sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O Livro-Caixa

No texto que a Máquina continua escrevendo, ainda somos os personagens de um livro-caixa.


(Foto: Ilustração: Max Velati)
Por Max Velati*

Recebi agradecido diversos emails de amigos e simpatizantes mostrando apoio à minha tese de que a Civilização, se despida de seus atributos abstratos e se enfrentada no concreto do cotidiano, pode ser vista como uma Máquina projetada para perpetuar apenas a si mesma. Recebi também de meu editor um sábio conselho: "Escreva textos menores. Ninguém mais tem tempo para ler". Acatei a sugestão e, no segundo artigo (sobre a memória), fiz o que pude para não dar ao leitor mais trabalho do que o estritamente necessário, mas então percebi que talvez estivesse diante de mais um ardil da Máquina, mais um mecanismo perverso a seu serviço.

A escrita nasceu para registrar o número de cabeças de gado nos currais, o número de escravos aprisionados e a quantidade de grãos trancada nos armazéns. Quando os funcionários do governo sumério corriam pelo palácio com tabuinhas de argila, estavam contando estoques e bens domesticados. A Máquina acolhia a invenção da escrita como uma descoberta essencial aos seus planos de expansão, um fluxo vital correndo nas artérias de poder. Os primeiros sinais calcados nas tabuinhas de argila não foram produzidos pelo impulso criativo que deu origem mais tarde à Literatura. Muito longe de servirem como instrumentos do espírito e da arte, os sinais surgiram como um meio prático de anotar os bens estocados.

O primeiro livro que a Máquina escreveu foi o livro-caixa.

Os engenheiros da Máquina perceberam que aqueles pequenos sinais podiam produzir grandes efeitos, alguns surpreendentes e, para a Máquina, toda surpresa é um perigo e tudo o que é imprevisível pode ser uma ameaça. A escrita revelou-se uma invenção incontrolável, um dispositivo poderoso a serviço de qualquer um, uma engrenagem independente capaz de danificar programas e mecanismos complexos. Aqueles sinais estranhos, se combinados de certa maneira, poderiam criar idéias perigosas; em potencial significavam um terrível veneno  correndo nas mesmas artérias de poder.

Para contornar este deslize e corrigir este erro de projeto, os operadores da Máquina decidiram pela eliminação física do problema: a destruição de textos selecionados, de bibliotecas excessivamente férteis e dos autores perigosos. Estas medidas acabaram criando mártires, conspirações e deram `aqueles pequenos símbolos ainda mais poder. Foi então que a Máquina desenvolveu um de seus mecanismos mais perversos: se não é possível controlar a escrita, a solução é controlar o tempo dedicado `a leitura até que fique mais fácil controlar o desejo de ler. Muito mais prático do que esmagar as sementes é impedir que elas tenham o tempo certo para germinar. 
E tempo é algo que a Máquina sempre soube controlar. 
Basta então nos roubar o tempo até reduzir a experiência da leitura a um processo mecânico, raso e estreito. Não só não temos mais tempo, como não temos mais o desejo de ter tempo para ler, a menos que a tarefa produza em nós efeitos imediatos.
Nesse ponto, é preciso admirar a Máquina: ao nos roubar o tempo ela também nos roubou a paciência. 
Fomos educados, treinados e adestrados para considerar o imediato, o eficiente e o pronto como a sagrada trindade do bem viver. "O tempo é precioso!" gritam os gerentes pelos auto-falantes da Máquina. O conhecimento pronto e aprovado pelo sistema então é distribuído em escalas industriais na forma de quadros de resumo, sinopses, perguntas mais frequentes, adaptações preguiçosas, listas convenientes, explicações pré-cozidas... Tais medidas sufocam o desejo da leitura paciente, da análise profunda e da experiência integral como um processo infinito, em constante aperfeiçoamento. Para o nosso conforto e uso imediato as escolhas já foram feitas pela Máquina, o principal já está destacado em negrito, o resumo já está na tabela, a sinopse já foi esquematizada, o filme já foi produzido para substituir o livro e a lista de tópicos principais já está no site em textos pequenos, fique tranquilo. 
A arte de ler ficou reduzida a um mero passar d´ olhos no conteúdo esquemático, uma busca ansiosa por respostas já temperadas. O ato de meditar, irmão mais velho da leitura, virou um minuto de silêncio ou uma angústia solitária a ser substiuída o mais rápido possível pelo aparelho eletrônico mais próximo.
É mesmo impossível não admirar a Máquina. 
Diminuir a Ignorância e buscar a Sabedoria são hoje  atitudes que exigem complementos porque só fazem sentido quando oferecem um prazer imediato ou atendem a uma demanda de mercado. 
No texto que a Máquina continua escrevendo ainda somos os personagens de um livro-caixa.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.

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