quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Consumistas, mas não cidadãos


Hatoum desfruta de elevadíssima reputação literária no exterior, traduzido em 17 países (Foto: Divulgação)
Marcus Eduardo de Oliveira

Dias atrás, num mesmo evento em São Paulo, conversei com dois dos maiores nomes da literatura mundial contemporânea: o moçambicano Mia Couto e o “nosso” Milton Hatoum, romancista e cronista dos mais brilhantes que esse País já produziu. Ex-professor de literatura na Universidade da Califórnia em Berkeley, Hatoum desfruta de elevadíssima reputação literária no exterior, traduzido em 17 países.

Desse profícuo e marcante encontro, saí carregando debaixo do braço o mais novo livro de Hatoum, “Um Solitário À Espreita”, (Cia das Letras, 287 págs.).

Nessa obra, Hatoum reúne deliciosas e agradabilíssimas crônicas escritas nos últimos dez anos, divididas em quatro seções, abordando temas dos mais diversos: memórias, afetos, viagens, correspondências, literatura refinada, amizades, sentimentos e, como não poderia faltar, “as coisas do Brasil”.

Especialmente numa dessas crônicas, intitulada “Carta a uma amiga francesa” (p. 174-5), chamou-me a atenção à abordagem e o olhar lançados por Hatoum em diferentes situações sobre o Brasil, descrevendo-o em rápidas palavras a uma amiga européia que, dias antes, estivera visitando o País; porém, “vendo” apenas uma “parte” do Brasil, e não a “realidade” nua e crua de uma sociedade que, de diferentes aspectos do desenvolvimento (renda, desigualdades, corrupção, competitividade, saúde, educação, estrutura habitacional, padrão de vida), deixa muito a desejar quando cotejada a outras nações.

Pois bem. Numa determinada passagem dessa citada crônica, escrevendo à amiga, Hatoum contextualiza sobre a relação dos brasileiros com o consumo - esse surpremo e sagrado ato mercadológico que nos é imposto e que deixa o deus mercado embriagado de tanto êxtase: “É verdade que o consumo dos brasileiros aumentou. O lixo acumulado nos rios e nas ruas é testemunha disso. Você bem que notou essa euforia econômica, uma euforia que esconde problemas antigos. Milhões de pobres tornaram-se consumistas, mas não cidadãos. Uma sociedade de consumo, sem cidadania”.

Não contente com essa impressão, nosso cronista, na continuidade do parágrafo, nos convida a uma profunda reflexão sobre essa vólupia, essa “necessidade” de comprar e comprar mais e mais que parece “consumir” literalmente tanta gente, ao levantar uma indagação das mais pertinentes: “Será esse o triste destino da maioria dos brasileiros?”

É sobre isso que desejo abordar. Primeiramente, temos que informar a amiga francesa de Milton Hatoum (se é que ela ainda não sabe) que não adianta sermos a sexta maior economia do mundo se, ao mesmo tempo, possuímos uma renda per capita de pouco mais de US$ 10 mil/ano que nos coloca atrás de 44 países nesse quesito. O outro nome disso é economia mal organizada e consolidada.

Especificamente ainda em relação a esse tópico (renda bruta), é oportuno “avisarmos” a “amiga européia” que somos donos de uma das mais brutais concentrações de renda do planeta, fato esse que nos coloca na oitava pior e lastimável posição entre 187 países analisados pelo tradicional Coeficiente de Gini - indicador de desigualdades na distribuição da renda -, superando apenas Colômbia, Bolívia, Honduras, África do Sul, Angola, Haiti e Comoros. Exceto essas, qualquer outra nação com economias muito menores que a nossa é capaz de aplicar equânimemente a distribuição da renda.

Embora o Brasil tenha mais de 51 milhões de famílias, apenas cinco mil delas apropriam-se de 45% de toda a riqueza e renda nacional. As 124 pessoas mais ricas do Brasil acumulam patrimônio equivalente a R$ 544 bilhões (12,3% do PIB). Certamente não foi esse o “País” que a amiga francesa de Hatoum viu.

Aqui se consome de tudo numa voracidade assustadora que, para dar conta desse consumo exagerado, a produção econômico-industrial dilapida, sem dó nem piedade, as riquezas naturais, com um único propósito: favorecer o deus mercado, pois a sanha consumista precisa ser bem alimentada.

Por isso a economia, essa ciência social “desenhada” erroneamente na perspectiva de elevado consumo como elemento-chave de prosperidade e ascensão está (na verdade, sempre esteve) muito mais interessada no consumidor, não no homem; está interessada no “produto”, não na pessoa.

Estupidamente, essa mesma economia, enquanto ciência que estuda a geração de riqueza, mas esquece de estudar o combate à pobreza, trata a destruição da natureza e do patrimônio ambiental como sinônimos de “produção de riqueza” e, pior, vê nisso, na derrubada da floresta, motivo de comemoração, afinal, o PIB aumentará com cada folha verde tombada ao chão.

Por isso Milton Hatoum foi certeiro, preciso e pontual ao afirmar que muitos “se tornaram consumistas, mas não cidadãos”, pois não é outra coisa que a economia faz e sempre fez: ela quer que eu, você, que nós sejamos “consumistas”, de preferência, sem cidadania.

Para isso, em conluio com a indústria do marketing põe a máquina publicitária (simplesmente o segundo maior orçamento do planeta, perdendo apenas para a indústria bélica) para torrar fortuna a fim de aguçar e ampliar “nossas” necessidades, manipulando sem o menor respeito nossos gostos e, principalmente, nossos gastos.

Lamentavelmente, a ciência econômica nunca quis “criar” e difundir os preceitos de cidadania, do ato coletivo, mas sempre desejou “criar” e difundir preceitos que cercam o consumo fácil; não raras vezes, inúteis, carregados de futilidade, acrescidos da ideia individualista, egoísta e muito materialista.

O consumo suntuoso, supérfluo (conspícuo, no idioma econômes) é prova inconteste disso. Consuma e se satisfaça: assim você será mais feliz. É essa a ordem que vem do mercado. Afinal, é assim que o mercado (local sagrado da economia) “funciona”, criando nas pessoas mais necessidades e desejos constantes, e “proibindo-os” de estabelecer limites.

Não por acaso, para dourar essa situação, a ciência econômica ainda deu um jeitinho de apregoar, sutilmente, que a felicidade (sonho de consumo da maioria das pessoas) pode ser alcançada a partir das satisfações que emergem, quase que unicamente, do “nobre” ato de consumir.

Não por acaso, os níveis de consumo por aqui, por ali e por acolá beiram a indecência e o esbanjamento colossais. São patologias mercadológicas que nos impregnam. Sobre isso há os mais diversos exemplos. Para não tornar essa contextualização mais enfadonha, fixemos os olhares em apenas um segmento: os eletrônicos.

De acordo com uma pesquisa da Accenture (uma consultoria global de gestão), o consumo de eletrônicos pelos brasileiros, por exemplo, ultrapassa o ímpeto de compra de habitantes de pelo menos oito países, em 15 categorias de produtos diferentes.

Ainda de acordo com essa pesquisa, 40% dos consumidores brasileiros pretendem adquirir TVs de alta definição no decorrer deste e dos próximos anos e 20% querem TVs 3D. No mundo, esses números são de, respectivamente, 25% e 12%.

Próximo de 89% dos brasileiros possuem celular, 79%, aparelho de DVD, 69%, televisor e 32%, netbooks. Os consumidores brasileiros superaram todos os consumidores dos demais países na compra de TVs em HD (28%), em 2012, câmeras de foto digitais (28%), netbooks (19%), sistemas de posicionamento global por satélite (GPS) (15%), leitores de música portáteis (12%) e consoles de jogos (12 %). Somente em 2012, os brasileiros “descartaram” (jogaram no lixo) 200 milhões de aparelhos de telefone celular. Consumir, consumir, consumir. Como indaga Milton Hatoum, “será esse o triste destino da maioria dos brasileiros?”
*Marcus Eduardo de Oliveira é economista com especialização em Política Internacional e mestrado em Estudos da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP). É professor de economia do UNIFIEO e da FAC-FITO, em Osasco/SP. Autor dos livros 'Conversando sobre Economia' (Editora Alínea), 'Pensando como um economista' (Editora EbookBrasil) e 'Humanizando a Economia' (Editora EbookBrasil – livro eletrônico). Contato: prof.marcuseduardo@bol.com.br

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