sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Consumo, logo existo

"Olho com desprezo aqueles que não podem consumir. Falharam como seres humanos."


(Foto: Ilustração Max Velati)
Por Max Velati*

Não acredito mais em cidadania, patriotismo, ideologia política de esquerda, direita ou qualquer outra direção. Perdi esta inocência ao ver com outros olhos as prateleiras dos supermercados e entendi melhor a minha condição no mundo ao me misturar à multidão excitada dos shoppings.

Sou um consumidor.

É isso e apenas isso o que eu sou. Existo na proporção exata do que consigo consumir. O consumismo é o único "ismo" real e confiável.
Diferente do que acontece em qualquer esfera da realidade, seja no âmbito da política, dos movimentos sociais ou da religião, no mundo do consumo há paz e ordem. Tudo é oferecido de maneira ordenada e bem rotulada.

Diferente do que acontece em qualquer outra esfera da minha existência, haverá sempre disponível muito mais do que preciso e isso significa que mesmo no meu sonho mais delirante estarei sempre desejando menos do que posso consumir. Haverá sempre mais disponível de tudo e para a minha comodidade tudo à disposição estará sempre criteriosamente ordenado e rotulado.

Diferente de idéias abstratas, tais como Justiça, Sabedoria ou Felicidade, as lojas e os supermercados oferecem artigos palpáveis. Nestas catedrais de consumo posso ver, tocar, provar e cheirar os objetos do meu desejo. E não preciso me preocupar se amanhã eu me cansar daquilo que ontem desejei tão ardentemente. Novos produtos estão a caminho, ligeiramente diferentes ou totalmente opostos para que eu esteja satisfeito em qualquer ponto do espectro da minha felicidade.

Muita gente pensa que o domingo é um dia pesado, quase triste porque anuncia a segunda-feira e a volta ao batente. O peso do domingo vem das lojas fechadas, do fluxo de consumo ausente das ruas. Não passeamos mais ao ar-livre se não pudermos consumir. Os shoppings ficam lotados porque aos domingos é ali e só ali que podemos ser felizes. "Menos praças e jardins e mais shoppings!" é o que gritamos silenciosamente procurando vagas no estacionamento.

Os jornais e a TV vez por outra explicam com absoluta clareza o que o consumo na escala atual significa em termos de danos e riscos para o planeta, para as gerações futuras e para o clima, mas nada disso importa diante da minha felicidade. Nada é mais importante do que possuir já aquilo que me faz feliz. A Terra, os filhos, os outros, os animais e o futuro não podem me fazer feliz agora. Só eu posso me fazer feliz e só consigo ser feliz se puder consumir.

Agradeço de joelhos todos os dias a invenção do crédito, que permite que eu tenha já aquilo que desejo, mesmo que neste ponto da vida eu não tenha condições de desejar. O crédito é o bom deus do consumo mostrando que me ama e que mereço ser feliz mesmo sem condições de pagar agora pelo meu desejo. O crédito é a revelação de que o meu desejo é o único limite real para a minha felicidade e todo o resto é negociável. 

Nas propagandas  a minha felicidade é explicada em todos os detalhes. Nestes filmes curtos, onde todos são felizes, o meu desejo recebe as informações técnicas que precisa para se educar, para expandir as minhas necessidades para além de tudo o que eu sabia sobre o mundo. Com técnicas sofisticadas tudo é explicado e sou salvo do pecado gravíssimo de possuir menos do que mereço, menos do que já existe, menos do que posso desejar.


Da publicidade recebo a única educacão que importa. 

Nas relacões pessoais também vigora o consumismo. Valho na proporção dos seres humanos que posso contratar para consumir. Escolho para aliados ou patrões aqueles que consomem mais do que eu na esperança de que um dia eu possa consumir tanto quanto eles. E assim deixo que me consumam esperando com isso tornar-me um deles. Inverto conscientemente o ditado que diz que para ser feliz "devemos aprender a usar as coisas e amar as pessoas". 

Olho com uma mistura de desprezo e repulsa aqueles que não podem consumir. Falharam como seres humanos, erraram o caminho e se perderam. Vivem em sofrimento porque estão sendo punidos pelo único pecado que o bom deus do consumo não perdoa.

Pecaram pela falta de ambição.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.

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