terça-feira, 8 de outubro de 2013

História de uma vida

Na Viena intelectual dos anos 30, muitos já sentiam o bafo de Hitler galgando o poder.

"O mal só triunfa quando os homens de bem nada fazem".
Por Lev Chaim, de Amsterdã*

Era sábado de manhã. O carrilhão da prefeitura bateu “silenciosamente” dez horas. O sol brilhava, mas o frio estava cortante em virtude do vento. A temperatura girava em torno dos cinco graus.À noite, ela chegava a zero. Era o inverno que se aproximava e com tudo. No rádio, ouvi a notícia da morte do papa da literatura alemã, o crítico e escritor Marcel Reich-Ranicki, aos 93 anos de idade.

No aconchego da lareira, abri novamente a autobiografia de Elias Canetti, “O jogo dos olhos”, Companhia das Letras (1931-1937), história de uma vida.Para quem ainda não o conhece, apresento: Elias Canetti – judeu sefardita, búlgaro de nascimento, mas austríaco de coração, ganhou o Nobel de Literatura em 1981. E Marcel Reich-Ranicki, cuja a morte acabara de ser anunciada no rádio, também era um admirador de Canetti.

Na Viena intelectual dos anos trinta, muitos já sentiam o bafo de Hitler galgando o poder na Alemanha, como também tinham notícias da cruel guerra civil espanhola. Ao virar mais uma vez a página do livro – “o jogo dos olhos” -, era como se eu desfolhasse camadas de histórias até então desconhecidas, todas elas permeadas de preocupação e medo para com o futuro imediato da Europa.

Ao contrário de Thomas Mann, autor de “A montanha Mágica”, os personagens de Canetti, principalmente de seu romance “Auto-de-fé”, deixam ver o desespero do individualismo, num caminho lotado de abismos, armadilhas, onde se destacam o auto-aniquilamento e a devastação. Eram personagens que retratavam o próprio desespero.

Canetti havia ido a Estrasburgo, na França, para um festival de música moderna, algumas semanas após a queima dos livros na Alemanha. Estavam ali músicos de todo o continente, que abraçavam novos caminhos e tentavam apontar um futuro possível para a Europa. Ai, Canetti se pergunta: “que caminhos seriam esses se não contassem com um futuro?”No entanto, o continente caminhava rumo à guerra.

Ele relata ali que se hospedou no Hotel Auberge du Louvre, no mesmo quarto em que o grande poeta Goethe esteve várias vezes para visitar um amigo doente. Isto no século XVIII. De qualquer forma, esta coincidência já ajudava Canetti a levantar sua moral, já que apenas poucos conseguiam ver o perigo que Hitler representava para todo o Continente.

Canetti recebeu a incumbência de um amigo: entregar pessoalmente uma carta a Anna Mahler – a filha do falecido músico e compositor Gustav Mahler. Esta era  escultora e propagadora da arte. Na década de trinta, Anna reunia a elite intelectual de Viena em seu Ateliê. Estar ali era um símbolo de status.

Ao entrar no ateliê de  Anna pela primeira vez e ser perscrutado pelos seus olhos,uma empatia aconteceu entre os dois. Canetti descreveu aquele momento da seguinte forma: “Senti-me capturado por aquele olhar. Seus olhos não mais me deixaram...Anna era feita de olhos, tudo mais era ilusão. Como admitir algo tão extraordinário: que os olhos sejam mais vastos do que a pessoa à qual pertencem?”

A partir daquele instante, o mito do olhar de Anna tornou-se realidade para Canetti, que o interpretou da seguinte forma: “Esta é a amplidão e a profundeza que ofereço: mergulhe em mim com tudo o que você é capaz de pensar e dizer; diga-se e afogue-se! A profundidade de tais olhos é infinita. Nada do que neles submerge alcança-lhes o fundo.”

Apesar do medo de escrever sobre tais encontros e não ser justo para com os mesmos, Canetti conseguiu também captar a essência do seu primeiro encontro com outro amigo escultor - Fritz Wotruba.  Aqui, não cabia o enfadonho “aviltamento das palavras” que,muitas vezes,eram distorcidas simplesmente a cargo da sedução momentânea.“Wotruba era a própria seriedade”, comentou o escritor.

Quando Fritz lhe ofereceu a mão, Canetti lembrou-se do dedo de Deus, criador de Adão, no teto da Capela Sistina, em Roma. Ao estender-lhe a mão calejada, acostumada a moldar a pedra, o escultor deu uma ideia de entrega total. Palavras de Canetti: “As mãos de Wotruba lembraram-me, também, o próprio Adão, sua mão inteira, com a mesma força vital que emana do dedo de Deus para o futuro do homem”.

“O jogo dos olhos” de Canetti também era um jogo das vaidades literárias e das descobertas intelectuais, expostas com tamanha força e paixão, que muitas vezes tinha que ser relido para captar todos os seus meandros. No primeiro encontro com Wotruba, ele já percebeu que eram almas gêmeas.

Assim ele o descreveu:“Wotruba, aos 26 anos, possuído pela pedra e por propósitos dela inseparáveis, desprovido de qualquer poder, impregnado de uma ambição cujo sentido nem por um momento ele punha em dúvida, tão certo de seu trabalho quanto eu do meu, de tal modo que imediatamente sentimos um ao outro – sem receio, hesitação, vergonha ou presunção – como irmãos”.

Ao reler estas belas palavras, mastigava lentamente o meu sanduiche de pão com queijo, regado a café preto. Aquela revisita à autobiografia de Elias Canetti, sem dúvida, proporcionou-me um certo alívio. Apesar de ninguém ter conseguido parar Hitler a tempo, nota-se ali que muitos perceberam o perigo que ele representava.

Por outro lado, isto me remeteu à frase que li recentemente em um artigo: “Talvez o irlandês Edmund Burke tivesse razão quando afirmava que o mal só triunfa quando os homens de bem nada fazem”(obrigado, João Pereira Coutinho). Tchau e até a próxima.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora. Escreve todas as terças-feiras para o Dom Total.

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