sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Lutero, a justificação e o papa Francisco

De nada adianta sair construir uma casa nova, quando o que queremos é reformar o solar de nossa família.
Por Rui Luis Rodrigues*

Depois de alguns séculos repousando em sua tumba, Martinho Lutero ressurgiu dos mortos. Como bom alemão, sua primeira parada vindo do cemitério foi numa cervejaria; depois de surpreender-se com algumas diferenças de dialeto e perceber que sua tradução da Bíblia, feita “na linguagem de hoje” do século XVI, tinha virado uma tradução castiça (“Raios, preciso fazer tudo de novo! E incluir umas dessas gírias atuais!…”), o querido reformador foi inteirar-se do cenário religioso. 

Numa biblioteca, aprendeu rapidamente a usar nosso oráculo; e através do Google descobriu que em 31 de outubro de 1999 católicos e luteranos assinaram um documento de consenso sobre o próprio “pomo de discórdia” da Reforma luterana, a doutrina da justificação. 

A primeira coisa que Lutero pensou, maravilhado, foi: “Se tivéssemos tido uma reunião dessas em 1517, tudo teria sido diferente!” Não é novidade para ninguém que Lutero nunca quis deixar a Igreja; e, segundo aquele documento que o reformador ressuscitado tinha diante dos olhos, já não havia mais “causa suficiente” (como se diria no século XVI, em linguagem escolástica) para o rompimento. 

Lutero saiu da biblioteca empolgado e, depois de informar-se, rumou para a casa do superintendente distrital da Igreja Luterana. Queria saber a quantas andava o processo de reconciliação. No caminho, viu um pequeno grupo amontoado diante da vitrine de uma loja, na frente de um aparelho de televisão. Transmitia-se uma entrevista dada, no Brasil, pelo papa Francisco. Lutero ficou ali, vendo a entrevista. Assistiu-a inteira. Habituado aos papas “principescos” do século XVI, Lutero praticamente não acreditava que aquele padre humilde, falando na necessidade do clero viver na pobreza no meio dos fiéis, podia efetivamente ser um papa. 

Lutero, que sempre teve muito respeito por Maria, começou imediatamente a entoar o Magnificat: “Minha alma engradece ao Senhor, e meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador…” Sua vontade era a de também entoar o Nunc Dimittis, o cântico de Simeão: “Agora, despede em paz o teu servo, ó Senhor…” – porque dizia consigo mesmo: “Tudo se acertou! Não sou mais necessário aqui!” 

Mas, num determinado momento da entrevista do papa, Lutero ficou ainda mais surpreso. O papa falava sobre as reformas a serem conduzidas na Cúria romana e, para justificá-las, disse, com toda a simplicidade: “Há um ditado muito antigo na Igreja que diz: Igreja reformada, que deve sempre ser reformada”. Lutero mal podia crer no que ouvia. “Ecclesia reformata, semper reformanda”, esse lema que embalou tantos adeptos da Reforma luterana, estava nos lábios do atual papa! 

Com o coração aos pulos, Lutero chegou à casa do superintendente distrital da Igreja Luterana. Surpresa, abraços efusivos, o homem chorava feito criança: “Cresci lendo suas 95 Teses!” “Que bom, que bom”, dizia Lutero. “Mas vamos ao que interessa. Viste o discurso do papa no Brasil?” “Bem, não…” “Mas por que não? Que *&$#@, homem!” (Não se escandalizem, é sabido que Lutero empregava linguagem pesada, até no púlpito). 

Imediatamente Lutero procurou a entrevista no Youtube, servindo-se do notebook do filho do superintendente. Mostrou-a ao homem, que a assistiu, pasmo. Finda a entrevista, Lutero disse: “Soube pelo mesmo Google que a Igreja que vocês teimam em chamar ‘luterana’ (um absurdo, porque eu não morri na cruz para ter Igreja em meu nome!) assinou um acordo com a Igreja Católica em 1999 sobre a doutrina da justificação. É verdade?” 

O superintendente tremeu, achando que isso teria desagradado o reformador. Tentou se explicar: “Veja, é que…” “Não me venha com ‘é que’! ‘É que’ coisa nenhuma! Quero saber o que foi feito depois para a plena reconciliação!” “Como assim?”, disse o homem, trêmulo. 

Lutero botou ambas as mãos sobre a cabeça, num gesto seu muito peculiar; sentou-se e pediu uma caneca de cerveja, “Weiss, por favor!” Depois de beber, limpou o bigode de espuma e disse, já mais calmo: “Vocês assinam um documento que mostra que o motivo principal das 95 Teses, o desentendimento em torno da doutrina da justificação, foi plenamente superado. Hoje, católicos e ‘luteranos’ pensam de igual modo sobre as bases da fé cristã. Acabo de ouvir o discurso do mais evangélico dos papas. E me pergunto: com tudo isso, como, 14 anos após esse acordo, ainda não nos reconciliamos plenamente?” 

O superintendente travou. Como explicar ao reformador a multiplicidade de interesses, de jogos de poder, de cátedras episcopais? Como dizer a ele que gerações de cristãos luteranos foram formados mais no ódio aos católicos do que na doutrina bíblica, e que o mesmo aconteceu também entre os católicos relativamente aos luteranos? Como dizer que “ser luterano” tornara-se característica “nacional”, especialmente para os alemães do norte, e que a plena reconciliação poderia desagradar muita gente? 

“Entenda, rapaz”, disse o antigo monge agostiniano. “Tivesse eu, em 1517, sido recebido por um homem como esse Francisco; tivesse eu tido ao meu alcance um grupo de teólogos católicos como esses que assinaram o acordo em 1999, jamais teria havido essa tal ‘reforma’. Ou melhor, ela teria ocorrido sim, mas como deveria ser: dentro da Igreja. De nada adianta sair e construir uma casa nova, quando o que queremos é reformar o antigo solar de nossa família. Compreendeu?” 

O outro engoliu em seco. “Sim… Acho que sim.” E depois de um silêncio, perguntou: “O que o senhor quer que a gente faça?” Lutero soltou uma risada larga, outro traço característico seu, e disse: “Você ainda pergunta? Não é o que eu quero, meu jovem, é o que o Senhor quer! João 17:21 faz parte da sua Bíblia, não faz? Bom, reúna a rapaziada toda e vamos pra Roma conversar com Francisco. O caminho é longo…” 

“Agora vamos de avião, voando”, disse o superintendente. “Chegaremos em poucas horas”. 

“Que bruxaria será essa?”, pensou Lutero. Mas, depois de Google, de televisão e de um papa que falava em reformas mais do que os protestantes, não se surpreendia com mais nada. “Que seja, compre as passagens. Mas antes, vamos beber outra cerveja!”
Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação - ALC, 21-10-2013.
*Rui Luis Rodrigues é doutor em História pela USP, diretor e professor da Faculdade de Teologia Carisma.

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