Livres para voltar a uma Olivetti Studio 44, linda e útil mesmo depois de 60 anos de sua fabricação.
Foto: Ilustração Max Velati. (Foto: ) |
Por Max Velati*
Em 1990 percorri a pé o Caminho de Santiago de Compostela, mas não se preocupe porque não vou fazer aqui o relato da minha peregrinação. A única razão para estar mencionando o fato é porque está relacionado aos dois temas principais do artigo de hoje: pequenas liberdades e o ofício da literatura.
Durante a minha preparação para a viagem recebi incentivos e bons conselhos, mas ouvi também opiniões insistentes sobre como não fazia nenhum sentido viajar a pé. Algumas pessoas simplesmente não conseguiam entender o que poderia motivar alguém a usar as próprias pernas numa jornada de mais de 800 quilômetros. Em tempos de carros de aluguel, trens e aviões, parecia bobagem buscar espontâneamente tantos desconfortos.
Confesso que de início fiz o possível para explicar que a minha peregrinação não era um "problema" a ser resolvido pela solução mais prática. Era justamente para escapar do hábito perigoso de avaliar tudo pelo aspecto prático é que eu estava disposto a pegar o meu bastão de andarilho e contribuir para manter viva esta tradição medieval (que não é mesmo prática sob nenhum ponto de vista). Como resposta recebia apenas um sacudir de cabeça cheio de piedade ou o argumento insistente de que mudamos muito desde a Idade Média e felizmente hoje fazemos tudo de um jeito melhor. Tenho certeza de que quando diziam "melhor" estavam pensando em "mais prático". A conversa então acabava bruscamente neste ponto, como se um portão fosse fechado e eu agora só tivesse permissão para ficar a uma certa distância. Eu e as minha estranhas idéias precisávamos ser mantidos `a margem do grande grupo que carrega a História nas costas rumo ao "melhor" e "mais prático".
Demorou algum tempo até eu começar a entender que não há problema se você estiver só brincando ou só experimentando um pouco o jeito mais difícil de fazer certas coisas, mas tudo muda se começar a escolher com convicção e frequência o caminho considerado menos prático. Este tipo de comportamento dispara alguns alarmes que servem para alertar o mundo que alguém, em algum lugar e por uma razão desconhecida está atrasando de propósito o avanço da Humanidade. Neste contexto, tal atitude é considerada uma espécie de desajuste, um desvio suspeito, pois soluções práticas e resultados rápidos constituem afinal a matéria prima do progresso. A Maior Eficiência é o estandarte que devemos seguir com absoluta devoção e qualquer desajustado andando na direção oposta deve ser considerado no mínimo um desertor, certamente alguém tomando uma rota de fuga.
Usar para o trabalho literário a máquina de escrever hoje em dia é uma prova de desajuste e uma espécie de deserção. Justamente por isso a velha datilografia assume um aspecto simbólico importante. A máquina de escrever é um dos últimos mecanismos para a propagação de idéias que ainda oferece uma certa independência e por isso carrega uma aura de rebeldia.
Se entendermos que os computadores são (e nos fazem) dependentes de empresas de softwares e fornecedores de energia elétrica, podemos deduzir que para cada idéia, palavra, poema, conto ou romance que materializamos na tela ou pela impressora, pagamos tributos pesados a estas corporações. Meus dedos sobre o teclado do computador alimentam uma cadeia complexa de poderes que afetam a economia mundial e até a saúde do planeta. As palavras piscando na tela do meu monitor colocam em movimento um jogo de xadrez disputado em muitos níveis, todos completamente fora do meu alcance e a maioria muito além do meu conhecimento.
Queria que ficasse claro que não estou atacando a tecnologia em geral e a indústria de computadores em particular. Estou apenas defendendo a máquina de escrever (manual!) como um instrumento ainda valioso para o ofício literário e para o exercício simbólico de um certo tipo de percepção e independência. Nesse caso é uma liberdade pequena, eu sei, mas cheia de significados.
Especialmente para os jovens escritores declaro que a máquina de escrever oferece tudo o que precisam para uma experiência literária real e profunda. Pressionar estas teclas, acionar estas molas, pinos, alavancas e dar vida a estas três mil peças combinadas é como conduzir uma sinfonia. Você poderia dizer o mesmo do computador e seus circuitos, mas na máquina você vê e ouve este espetáculo e festejando esta harmonia recebe sinos repicando ao final de cada linha.
Escrever usando a máquina de escrever faz com que todos os seus erros, alterações, enganos e frases quebradas existam por fim como a família, os ancestrais da sua versão final. As marcas, os borrões, as notas manuscritas entre as linhas e as fileiras obcenas de XXXX sobre palavras descartadas são os antepassados do seu texto final. Como ocorre em qualquer família (ou deveria ocorrer) os parentes mais idosos vão mostrar `as gerações seguintes as origens, as raízes da linhagem e seu texto saberá de onde veio.
Isso só é possível porque a máquina de escrever ama o escritor.
É um amor honesto, pois a máquina de escrever se mostra sem nenhum pudor e não esconde nenhuma de suas partes: molas quebradas, manchas de óleo, engrenagens gastas...tudo está ali para os seus olhos e suas mãos. Este amor franco é feito de átomos e este é um aspecto importante em tempos em que quase todas as formas de amor estão se tornando virtuais e tão abstratas que beiram a covardia. É um amor corajoso porque enfrenta chuvas e tempestades sem medo de morte súbita por curto circuito. E é um amor que nunca dorme, não descarrega e na passagem dos anos enfrenta o tempo com dignidade envelhecendo dia a dia com você.
Um computador - vamos ser honestos - não ama você.
Por um simples "sim" ou "não" clicado por engano todo o seu trabalho desaparece em questão de segundos. Não pode ser amor se a alma e as entranhas estão escondidas em misteriosas caixinhas pretas interligadas por uma força que você não vê. Mesmo as festejadas funções de "copiar", "colar" e "cortar" que muitos pensam ser sinais de compreensão generosa e amor incondicional, não provam de fato nem compreensão e nem amor. O computador deixa você cortar, colar e copiar simplesmente porque não dá a mínima. Faça o que quiser, faça como quiser, mude, delete e cole! Nada disso é importante! Todo o seu trabalho pode escapar do seu controle a qualquer instante, sumir sem adeus para morrer em uma cova sem lápide no lugar amaldiçoado para onde vão os arquivos perdidos.
Se você pensa que recebe do seu computador algum tipo de amor saiba que é só uma forma rasa de afeição que arranca pedaços preciosos do seu tempo com luzes ofuscantes, oferece entretenimentos baratos e no processo devora a saúde de seus olhos. Se for amor saiba que é do tipo egocêntrico e que exige que você esteja sempre por perto, preso ao limite do cabo de força. Talvez possa sair por uma ou duas horas para um banho de sol, mas volte logo para renovar os votos desta relação, pois sem as baterias carregadas o seu computador nem sabe que você existe.
O produto deste falso relacionamento é a versão final nascida da impressora. Eis a cópia do texto sempre limpa, sempre imaculada, sem nenhum toque humano, sem versão anterior, sem a menor lembrança da difícil e mágica jornada que a boa literatura recomenda entre a idéia seminal e o texto finalizado. Ao contrário da máquina de escrever, uma história digitada no computador e gravada na memória não tem memória da própria história.
Escrever usando um computador é a melhor, mais rápida e mais limpa forma de redação. Para a versão final do texto é sem dúvida a maneira mais prática, eu sei disso. O computador também permite a propagação de idéias em escala exponencial como a plataforma para este artigo, por exemplo. Eu seu, eu sei e eu sei. Mas escrever usando a máquina de escrever faz com que você convide os seus pensamentos e a sua energia criativa para uma caminhada lenta, cheia de desconfortos, mas absolutamente necessária para manter a sua experiência profunda e a tradição viva.
Se no seu caminho surgirem as placas "Experiência Profunda" e "Tradição Viva", você está caminhando na contramão. Siga com cuidado, mas siga em frente.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.
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