segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Coroa de flores para Primavera Árabe

Mal desabrocharam flores murcham na vala comum onde jaz a democracia. Guerra civil paira no horizonte.


Sufocado o grito árabe por democracia e liberdade.
Por Moisés Rabinovici*

A Primavera Árabe murchou. Suas últimas flores desbotaram sobre a vala comum em que jazem a democracia, a liberdade e a esperança no Oriente Médio. Vidas curtas, nem sequer desabrocharam. Apenas três anos da primeira florada de jasmim, na Tunísia, e os jardins estão totalmente revolvidos. 

Os militares são de novo o poder no Egito. A Irmandade Muçulmana foi quase aniquilada. Seu líder, o ex-presidente derrubado Muhammad Morsi, preso. A fortuna acumulada pelos fiéis irmãos islâmicos, confiscada. O jornal da propaganda fundamentalista, fechado. Mas a guerra civil paira no horizonte, e não é uma miragem: confrontos com o exército no deserto do Sinai se tornam frequentes, às vezes envolvendo beduínos que contrabandeiam armas, partidários de quem paga mais.

Um aiatolá paz e amor, o sorridente Hasan Rouhani, é a nova cara do Irã, no lugar do soturno e mórbido Mahmoud Ahmadinejad. Do nada, ele conquistou, instantaneamente, a simpatia do presidente Obama. Não lhe deu a mão, para o cumprimento oferecido, mas atendeu ao telefone. Falaram por 15 minutos. Romperam 34 anos de mudez. Tanto os EUA quanto Israel já o conhecem de outros tempos, por contatos secretos. Com ele, a CIA negociou um drible ao embargo de armas, em troca da libertação de seis reféns americanos com o Hezbollah, no Líbano, além de ajuda às forças anticomunistas combatendo a Frente Sandinista de Libertação Nacional, na Nicarágua. Foi o escândalo Irã-Contra, de 1986.

As armas que a CIA prometera a Rouhani seriam entregues por… por? Claro: o inimigo Israel. Um assessor de Shimon Peres para contra-terrorismo, Amiran Nir, metamorfoseado de enviado especial americano, entrou em ação. Estavam em jogo 500 mísseis TOW, 150 Hawk terra-ar e 200 ar-ar Sidewinders. Os dois se encontraram. A conversa, gravada, incluiu um curioso e inesperado conselho para lidar com aiatolá Khomeini, já doente: “Se alguém se opuser a ele resolutamente, o fará recuar 100 passos. Mas se ele se achar mais forte, avançará 100 passos”. 

Pouco mais de dois anos desse encontro, em 30 de novembro de 1988, Amiran Nir pegou um Cessna T-210 para voar de Uruapan, no estado mexicano de Michoacán, à cidade do México. O avião monomotor caiu nas montanhas, sob o céu claro, sem nuvens. Israel arquivou suas investigações sob o registro de “morte misteriosa”.

O sorriso iraniano que cativou Obama é o pesadelo do primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu. “Cínico!” - esbravejou. “Lobo em pele de cordeiro” - acrescentou. Essa alegria contagiante  pode render o isolamento de Israel ante o Irã atômico. Se quiser destruir as usinas nucleares, estará sozinho. Mas se não agir, corre o risco de tornar-se o seu primeiro alvo. 

No Egito, melhor os militares que a Irmandade Muçulmana. Assim as fronteiras dos dois países recobraram o estado de paz congelada inaugurado por Anuar Sadat e mantido por Hosni Mubarak, mas ameaçado por Morsi. Canais de comunicação que nunca fecharam voltaram a dar vazão às informações secretas entre os vizinhos. Gaza observa uma trégua não proclamada. Vez em quando, o Hamas dispara um míssil na direção do deserto do Neguev.

A Síria também parece melhor ao Ocidente com o brutal ditador Bashar Assad, que superou a violência do pai, Hafez, do que com a legião estrangeira do terror reunida para derrubá-lo. Dos males, o menor. E o menor, aqui, são 100 mil mortos desde 2011, entre eles 1.400 sufocados por gás. Os rebeldes que prometiam uma primavera generosa em flores irromperam como ervas venenosas regadas a sangue. Um guerrilheiro deixou-se filmar comendo o coração de quem acabara de abater. Países que proviam apoio e armas fugiram horrorizados. Por vias transversas armavam a Al Qaeda, de quem são alvos jurados. 

Quando o governo sírio cruzou a linha vermelha traçada pelos EUA, apesar de invisível num mar de sangue, Obama não honrou a ameaça de punição, tão repetida. A Inglaterra votou não se envolver. Olhos por olho, dentes por dente, a linguagem no Oriente Médio - e o líder da superpotência piscou. Caminhava para uma derrota no Congresso, que arrolou como avalista para um ataque aéreo “cirúrgico”. 

Foi assim que surgiu para salvá-lo ninguém menos do que Vladimir Putin, no absurdo papel de defensor dos direitos humanos. Ele ainda escreveu um artigo para o New York Times, num tom de prêmio Nobel da Paz, tripudiando sobre a Casa Branca. Já há quem proponha a sua candidatura para este final do ano. A Rússia está de volta ao Oriente Médio, ao socorrer a Síria, seu cliente mais antigo. É um complicador: como a antiga União Soviética, concentra a liga de rejeição aos EUA, tendo o poder de veto, que usa muito, no Conselho de Segurança da ONU. 

Os primeiros jasmins que inauguraram a Primavera Árabe brotaram em Tunis no outono de 2010. Foram semeados por jovens armados de Facebook e Twitter que extraíram de 26 anos no poder o presidente tunisiano Zine el-Abidine Ben Ali. 

A Primavera chegou a florir também na Argélia, Jordânia, Mauritânia, Omã, Iêmen, Arábia Saudita, Líbano, nos territórios palestinos, Marrocos, Djibuti, Bahrein, Iraque e Kuwait, mas foi prontamente podada - e secou. Como na de Praga, na antiga Checoslováquia, em 1968, e na dos Cravos, em Portugal, em 1974, combateu-se na rua por democracia, liberdade, empregos, contra a corrupção policial e a repressão militar. 

Dois dos jardins da Primavera Árabe foram dizimados pela praga da violência. Na Líbia, o ditador Muamar Kadafi saiu de 42 anos no poder para a morte, o seu corpo profanado e arrastado por um carro pelas ruas. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) juntou suas forças, principalmente francesas e americanas, às de líbios rebeldes, mas deixou ao sair as terras improdutivas e tribos em disputa pelo poder. 

Os acordos de Oslo, ou o que sobrou deles, fizeram 20 anos em setembro, com Israel em estado de alerta e os palestinos, desapercebidos. O novo secretário de Estado americano, John Kerry, quer ressuscitá-los, mostrando que é capaz de progredir onde o presidente Obama só afundou, como que tragado por areia movediça. 

A retirada americana do Iraque, em 2011, deixou um vácuo rapidamente preenchido pelo Irã. Xiitas autoritários, sunitas rancorosos, e curdos em busca de autonomia, são ingredientes certos para mais violência. Os palestinos permanecem divididos entre Hamas e Fatah. Assim como o Líbano, fragmentado por cristãos, drusos, sunitas e xiitas. A Turquia exige um espaço como se fosse um novo Império Otomano no Oriente Médio: já repetiu ultimatos à Síria e convive em atrito constante com Israel, embora sigam aliados. Por fim, a Jordânia, que já foi refúgio de palestinos, recebe atualmente milhares de refugiados sírios, sem fôlego para enfrentar alguma pressão mais forte do Irã, ou um Assad redivivo e vingativo.

O Oriente Médio está agora no outono, esperanças caindo como folhas. Na verdade, as estações do ano não são mais metáfora para utopias nem poesia. Só uma mantém um significado além do clima. É o verão. A estação das guerras, céu sem nuvens para ataques de aviões, trilhas secas nas fronteiras para o avanço de tanques, o calor que ferve o sangue dos soldados no front, boa parte do mundo em férias. 

O próximo verão vai depender das negociações para impedir que o Irã tenha a sua bomba atômica, apesar do sorriso encantador de seu novo presidente. Que evaporem os arsenais de armas químicas da Síria. Que os militares egípcios convoquem eleições, mesmo sem candidatos da Irmandade Muçulmana, favoráveis à ditadura islâmica. E que israelenses e palestinos cheguem a um acordo de paz. Milagre? Por que não, se estamos na Terra Santa?
*Moisés Rabinovici é Diretor de Redação do Diário do Comércio de São Paulo
Dom Total

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