segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O instigante senhor D’Accord

Aprendi que, agindo como o Sr. D´Accord, ganhava sempre alguma coisa, geralmente muitas coisas.

Nascido na França, D´Accord foi educado dentro de princípios aristocráticos.
Por Evaldo D´Assumpção*

Conheci o Sr. D´Accord há algum tempo. Nem pouco nem muito. Talvez há cinco ou seis anos. Discreto em seus gestos, hábil nas palavras e ponderado nas respostas, suas reações aos acontecimentos eram surpreendentes. Creio que nascido na França, certamente foi educado dentro de princípios aristocráticos – no bom sentido, é lógico. Teria vindo para o Brasil ainda criança, contudo trazendo bons hábitos bem arraigados, a ponto de resistir às pressões deseducadoras de nosso povo acolhedor, porém quase nada civilizado. 

Incapaz de jogar o envoltório de balas no chão, jamais admitia despejar lixo fora dos recipientes apropriados, mesmo sendo eles tão escassos em nossas vias públicas. D´Accord aprendeu a amar a vida contemplando as belezas naturais da paisagem brasiliense. Certa vez disse-me ter sido leitor e admirador de um clássico infanto-juvenil do início do século XX, chamado Pollyanna, de Eleanor H. Porter. Enfim, D´Accord era uma pessoa bastante agradável, relembrando aquelas que a antiga revista Seleções do Reader´sDigest retratava numa de suas seções mais deliciosas: “Meu tipo inesquecível”.

Sua cativante personalidade me veio à memória, observando o comportamento das pessoas nos dias atuais. Estressadas, amarguradas, exageradamente apressadas, incapazes de expressões tão simples, porém tão eficazes como “por favor”, “com licença”, “perdão”, “obrigado”. Pessoas que entram num determinado ambiente, e sua primeira manifestação é uma crítica, quase sempre a detalhes insignificantes. Reclamam das mínimas coisas, mesmo elas sendo totalmente desprovidas de importância. Em seguida, olham para os que ali se encontram como se fossem monstros recém-chegados de planetas exóticos, avaliando-os da cabeça aos pés, geralmente em busca de defeitos, idiossincrasias, quase sempre insignificantes, porém suficientes para lhes permitir o exercício mórbido da crítica, do comentário depreciativo, quiçá da auto-exaltaçãoestribada no detalhe convenientemente enfocado para tal.

Pessoas que olham para os outros com destrutiva voracidade, sequer lhes passando pela cabeça que também elas são um “outro”, para todos os outros que a rodeiam e as observam.

Por mais que pareça, o Sr. D´Accord não era um simplório, muito menos um pusilânime. Pelo contrário, tinha forte personalidade, decisões firmes e acuradas. Contudo, jamais impositivas,menosprezíveis, redutoras. Arguto, sabia calar-se quando não podia criticar construtivamente, conter-se, quando não tinha o que elogiar. Não engolia desaforos, simplesmente os ignorava. E o fazia por pura decisão pessoal, resultado de sólida e genuína autoestima. 

Ao receber qualquer coisa, fosse um lugar para ficar, uma cadeira para assentar-se, uma travessa de acepipes para degustar, um grupo de pessoas para compartilhar, sempre buscava vislumbrar em cada detalhe, em cada pessoa, em cada circunstância, o que de melhor ali pudesse existir. Afinal, como afirmava, na realidade em que nos encontramos, no mundo de impermanência em que vivemos,nada existe de perfeito, absolutamente nada que seja totalmente maravilhoso. Nem coisa ou pessoa alguma, que não possua algo de bom,do qual não possamos usufruir. 

Ele até gostava de metaforizar, comparando tudo e todos a uma inexplorada mina de pedras preciosas. Se procurarmos com afinco e com confiança em nossa capacidade prospectiva, em nosso discernimento, e também apoiados em nossa autoestima e confiança, com certeza poderemos encontrar belos diamantes entre as rochas grosseiras e disformes. Ou, quando nada, teremos a satisfação interior de ter acreditado na capacidade ilimitada do Criador, que jamais faria alguma coisa totalmente má, alguém que não tivesse, pelo menos uma parcela de bondadeque pudéssemos compartilhar.

O Sr. D´Accord marcou, sem dúvida, a minha vida. Aprendi que, agindo como ele agia, ganhava sempre alguma coisa, geralmente muitas coisas. E não perdia nunca! Quando nada conquistava a capacidade de não me desgastar, de não liberar adrenalina e outras substâncias altamente nocivas à minha saúde cardíaca e mental. Aprendi que seu aspecto extremamente saudável e jovial, sua alegria e sua cativante simpatia, mesmo tendo ultrapassado mais de sete décadas de vida, era fruto dessa excepcional forma de viver. 

Procurando imitá-lo, conquistava novas amizades, desfazia más impressões, promovia a concórdia e, muito mais do que tudo isso, alcançava a paz e a felicidade, sem precisar dos constantes Rivrotris, Lexotans e assemelhados, menos ainda dos cracks, da cocaína e de tantas outras muletas tortas, hoje tão requisitadas pela agonizante humanidade, dos mais jovens aos mais idosos. Devo muito ao Sr. D´Accord.
* Evaldo D´Assumpção é médico e escritor.

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