segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Um ano sem Philip Roth

Há um ano, o mais importante romancista vivo abandonou para sempre a literatura



Philip Roth: o melhor, segundo todos os melhores (Foto: Divulgação)
Por Marco Lacerda*
Há um ano, o centauro das letras norte-americanas, um dos últimos de uma estirpe de novelistas que definiu o século 20, disse adeus Philip Roth deixou a literatura. “Acabou. ‘Nemesis’ foi meu último romance”, disse ele à revista francesa Les Inrockupitibles. Aos 79 anos o autor admitiu, na época, estar consciente de aproximar-se do fim da vida e que preferia aproveitar o que lhe resta de tempo para dedicar-se à leitura de seus romances preferidos.
Roth é provavelmente o romancista vivo mais importante do mundo. Não necessariamente o melhor ou o pior, que isso é discutível, nem o que mais nos toca, mas aquele do qual mais falam seus colegas, para exaltá-lo ou refutá-lo, aquele do qual qualquer leitor mediano leu duas, três, quatro novelas. Aquele que, na falta injustificável do Prêmio Nobel de Literatura, recebeu o Príncipe de Astúrias das Letras, entregue pelo rei Juan Carlos da Espanha.
Philip Roth (New Jersey, 1933) dedicou sua literatura a interpretar as paixões humanas, sem excluir os aspectos mais ingratos da nossa conduta. Maltratado pela crítica, ‘A humilhação’ (2011) entre nas catacumbas da sexualidade, mostrando os delírios barrocos do desejo numa época dominada pela pornografia. Em ‘A marca humana’ (2001) já explorava o caráter irracional do sexo, um impulso que permanece na velhice, podendo reunir pessoas aparentemente incompatíveis.
Predestinação e fatalismo
Incongruências à parte, o desejo é mais sincero que o anseio de reconhecimento social. No romance, Coleman Silk constrói sua vida sobre uma mentira, ocultando sua condição de afrodescendente graças a sua pela branca, o que lhe permite escalar até oposto de decano da Universidade de Atenas. A impostura vai por água abaixo quando, aos 71 anos, envolve-se numa aventura amorosa com um faxineira de 34 anos, divorciada e analfabeta. Apesar da reprovação social, a paixão tardia de Silk é muito mais honesta que sua carreira acadêmica caracterizada pela covardia.
Em ‘Nêmesis’ (2012) recorre a uma epidemia de pólio para denunciar a intolerância da América branca e protestante, que exclui o diferente e não aceita nenhuma forma de discrepância. De origem judaica, Roth entrou fundo nos traumas associados à segregação racial. Ser judeu significa conviver com sentimentos de culpa e redenção numa cultura que fincou raízes na predestinação e no fatalismo. O suposto otimismo da civilização norte-americana serve apenas para encobrir seu pessimismo antropológico.Os judeus compartilham uma visão lúgubre do ser humano. Philip Roth endossa essa percepção, assegurando que a América não é um país jovem, mas uma terra maldita onde imperam a violência, a falta de solidariedade e cobiça.
Filho de imigrantes da antiga Galícia, Roth ensinou literatura e escrita criativa em várias universidades até 1922. Em Chicago conheceu Saul Bellow e Margaret Martinson, sua primeira mulher, um casamento tortuoso e insatisfatório. O divórcio e a morte de Margaret num acidente de carro não eliminarão sua amargura que será refletida em sua literatura através de uma série de personagens femininos altamente destrutivos, como a Mary Jane Reed de ‘O complexo de Portnoy (1969)
Crítico feroz
Em 1971 Roth mergulha no território da sátira política com ‘O animal agonizante’, um retrato feroz do então presidente Richard Nixon, que tenta justificar o massacre de My Lai com argumentos obscenos e oportunistas. Em 1972 surge ‘O seio’, protagonizado por David Kepesh, um professor de literatura que sofre uma metamorfose transformando-se em torso de mais de 70 quilos.
Em 1997, ganha o Prêmio Pulitzer com ‘Pastoral americana’, que narra a tragédia de um esportista com uma filha envolvida em atentados terroristas. Com ‘Me casei com uma comunista’ (1998), ambientado nas latrinas do macartismo, e ‘A marca humana’, tendo o escândalo Monica Lewinsky como pano de fundo, completa a “trilogia americana”, um ambicioso mosaico que retrata os demônios internos de um país condenado a naufragar em suas próprias contradições.
Philip Roth nunca pretendeu ser um visionário que antecipa o futuro. Simplesmente se considera um cronista que confirma o caráter indissociável entre o individual e o coletivo. No século 21, a sexualidade está modelada por novas tecnologias, enquanto a política retrocede ao século 19, com guerras ilegais e exacerbação das desigualdades sociais.
O velho conflito entre Eros e Tanatos segue agitando-se em nosso inconsciente e o amor quase sempre é produto de uma confusão com desfecho amargo.O homem segue sendo um animal social, mas isso não significa que tenha conseguido conviver em paz com seus semelhantes. Philip Roth não é um moralista, mas um escritor sempre a nos lembrar nossas imperfeições mais dolorosas. Ele pode ter abandonado a literatura, mas sua literatura jamais nos abandonará.
"Patrimônio", de Philip Roth - Veja o vídeo:

*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total

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