É impensável imaginar futuros possíveis se um bilhão de pessoas não come.
"Se houver vontade, o que temos não acaba".
Por Carlo Petrini*
Há algo novo a dizer a propósito da fome no mundo? Algo que ainda não tenha sido dito? Há. Ou melhor, havia. E é o que o papa Francisco disse na última segunda-feira (9), trazendo à atenção de uma política, e provavelmente também de uma Igreja, aparafusado sobre si mesma, uma situação planetária que não é tolerável: o fato de que quase um bilhão de pessoas no mundo estão desnutridas ou passam fome não é uma questão de má sorte ou de destino, é uma questão de escolhas e de responsabilidades.
Em uma videomensagem gravada por ocasião do lançamento da nova campanha da Caritas Internationalis contra a fome, o pontífice chamou a atenção do mundo para aquilo que ele chamou de "o escândalo mundial" da morte por fome.
A fome certamente não é um tema novo para o mundo católico e para os papas, mas é nova a atitude que emerge das palavras de Francisco: "Não podemos virar a cabeça para o outro lado e fingir que isso não existe. (…) Convido a todos nós a nos tornarmos mais conscientes das nossas escolhas alimentares que muitas vezes envolvem desperdício de alimentos e mau uso dos recursos à nossa disposição".
A perspectiva é invertida. A fome não é um acidente da história, mas sim um produto funcional ao sistema alimentar e produtivo em que cada um de nós desempenha um papel e tem uma parte. A reviravolta é radical, não se coloca mais no centro apenas a ajuda que os ricos afortunados devem por espírito de caridade aos irmãos mais desafortunados. Ao contrário, Francisco diz claramente que nós, com o nosso estilo de vida, somos parte do problema e não só da solução.
A mensagem do papa chegou no momento em que metade do mundo estava se preparando para participar do funeral de uma das figuras mais imponentes da modernidade, Nelson Mandela, justamente no continente em que hoje se concentra a maioria dos famintos. Se Mandela conseguiu ver o seu continente liberado da vergonha do apartheid e do colonialismo (ao menos do institucionalizado), ele não consegui ver, porém, os habitantes desse continente livres da fome.
Em uma passagem da sua mensagem, Francisco diz: "Os alimentos bastariam para saciar a todos", e, "se houver vontade, o que temos não acaba". Esse é o ponto, a fome é uma vergonha solucionável, apagável da história em tempos razoáveis. Falta vontade política, e nós, cidadãos, associações, organizações, partidos, movimentos, devemos ser a massa crítica que põe o processo em movimento.
Para o povo judeu, as duas calamidades por excelência eram a fome e a escravidão. Pois bem, para derrotar definitivamente a escravidão, ao menos a legalizada, tivemos que esperar séculos e até atravessamos períodos em que a humanidade viveu contradições evidentes sem pestanejar. Basta pensar na Constituição Americana, elaborada em 1787, dois anos antes da Revolução Francesa. Era sancionada a igualdade de todos os homens, mas por quase um século, contemporaneamente à vigência dessa Constituição, nos Estados do Sul, a escravidão era não apenas aceita, mas até normalizada. O último Estado do mundo a aboli-la a partir do seu próprio código foi a Mauritânia, em 1980, mais de dois séculos depois do nascimento do movimento abolicionista.
A fome está seguindo um percurso semelhante. Francisco fala do "direito dado por Deus a todos de ter acesso a uma alimentação adequada". Eu acrescento que o direito dos homens também estabelece esse ponto firmemente. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, diz-se que "toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação...", enquanto na Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar Mundial de 1996 dá-se um pouco a mais afirmando: "... o direito de toda pessoa a ter acesso a alimentos sadios e nutritivos, de acordo com o direito a uma alimentação apropriada e com o direito fundamental de todo ser humano de não passar fome".
Ninguém põe em discussão essas formulações, mas todos nós convivemos com a consciência da existência de um bilhão de desnutridos.
A mensagem do papa é uma solicitação moral extraordinária e deveria ser inserida em um debate político que parece ter esquecido a centralidade dos alimentos. O objetivo da derrota da fome deve ser assumido como prioritário por cada um de nós, não só por fraternidade universal, mas também pelo próprio bem-estar pessoal. Não podemos ser felizes se os outros também não o são, razão pela qual até que não se consiga apagar essa vergonha não poderemos nos dizer completamente realizados. Se uma fatia tão grande da "grande família humana" não tem acesso aos alimentos, isso significa que nós não estamos cumprindo o nosso dever de irmãos.
O pontífice fala da importância dos alimentos na mensagem cristã e dá o exemplo da parábola da multiplicação dos pães e dos peixes. Naquela ocasião, posto a par da multidão de pessoas famintas que acorreram para ouvi-lo, Jesus não hesita e manda imediatamente os seus discípulos a buscar comida para todos. Eis o ponto: sem comida, não há palavra de salvação que se sustente.
Hoje, é impensável imaginar futuros possíveis, saídas da crise mundial, novos paradigmas de convivência, se um bilhão de pessoas não comem. Por isso, a mensagem de Francisco é uma mensagem de libertação. Devemos sacudir de cima de nós a ferrugem das nossas questões políticas de pouca importância para voar alto e para enfrentar desafios realmente epocais e centrais.
Esse sistema alimentar mostra a cada dia os seus lados obscuros, a partir de qualquer ponto de vista que se olhe para ele. Aos mortos por fome, se contrapõem os obesos; aos desnutridos, os hipernutridos, com a diferença de que os famintos e os desnutridos não são artífices das próprias escolhas alimentares, mas sofrem a violência do sistema.
La Repubblica, 11-12-2013.
*Carlo Petrini é chef e fundador do movimento Slow Food.
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