José Cláudio Junqueira, professor da Dom Helder Câmara
Em novembro de 2011, Minas Gerais aprovou a Lei 19.823, que dispõe sobre a concessão de incentivo financeiro a catadores de materiais recicláveis. O projeto ganhou o nome de ‘Bolsa-Reciclagem’ e entrou em prática em junho de 2012, quando a lei foi regulamentada.
Desde então, 1100 catadores, reunidos em 55 associações e cooperativas, receberam o auxílio pelo serviço ambiental prestado e tiveram sua renda média mensal aumentada em 40%. “Ao coletar papel, por exemplo, recursos naturais são poupados, árvores deixam de ser cortadas para a produção de celulose. Há também economia de energia e redução do volume de material despejado nos lixões”, aponta o engenheiro José Cláudio Junqueira.
Doutor em Meio Ambiente pela Universidade Federal de Minas Gerais, Junqueira é professor da Escola Superior Dom Helder Câmara e atuou como pesquisador pleno da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), na qual ocupou também os cargos presidente e diretor técnico, tendo se aposentado em 2012. Além de ser um dos principais idealizadores do ‘Bolsa-Reciclagem’, o pesquisador faz agora um trabalho de acompanhamento e avaliação do projeto, com o apoio do Centro Mineiro de Referência em Resíduos (CMRR). No último mês, foram apresentados os resultados do primeiro ano de aplicação.
“Juntas, as cooperativas encaminharam para indústria 30 mil toneladas de material e receberam por essa comercialização 10 milhões de reais. O Estado, a título de pagamento por serviços ambientais, pagou outros 4 milhões. Costumo dizer: este é o projeto (entre os que conheço) que melhor reflete o conceito de sustentabilidade. Ele une os aspectos econômico, ambiental e social”, afirma José Cláudio.
Em entrevista ao portal Dom Total, ele detalha o funcionamento do ‘Bolsa-Reciclagem’, discute a questão dos resíduos no Brasil e refuta as críticas feitas ao projeto, frequentemente comparado a programas assistencialistas. Confira:
Como a sociedade lida com a questão dos resíduos sólidos atualmente?
Hoje, com a sociedade de consumo, nós descartamos muito. Veja o caso das embalagens: há mais tempo eram retornáveis, convivíamos com o famoso casco de cerveja e refrigerante. Só que, para a sociedade de consumo, o ‘descartável’ foi uma coisa muita boa, porque não é preciso ficar carregando as embalagens vazias para devolver. Isso trouxe uma comodidade enorme para a vida moderna, sempre bastante corrida.
Tivemos primeiro o surgimento das latas de flandres, depois fizeram as embalagens em alumínio [que são mais leves]. E vieram as ‘long necks’, garrafas PET. Mas se essa evolução trouxe comodidade para o cidadão, trouxe um problema muito maior para o meio ambiente. Tudo é descartado. A maioria das prefeituras despeja o lixo coletado em lugares inadequados, poluindo o solo, águas subterrâneas e superficiais, áreas de preservação. Essa é a nossa realidade.
Todos devem ter visto: no oceano Pacífico há uma ilha de plástico enorme, a fauna morrendo por ingestão desse material. O lixo traz uma série de problemas ambientais, quando na verdade tem um grande valor agregado.
É possível mensurar esse valor?
Um quilo de latinha de alumínio vale hoje R$ 3,00; um quilo de PET vale R$ 1,00. Populações marginalizadas começaram a perceber esse valor e fazer a coleta desse material como forma de sobrevivência, porém, muitas vezes, em condições indignas.
Esse trabalho começou a ser organizado na década de 1980, principalmente com o apoio de organizações religiosas e técnicas. Em 1988, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) deu início ao trabalho com os catadores de materiais recicláveis de Belo Horizonte, juntamente com a Cáritas.
Como o senhor avalia a atual situação dos catadores de materiais recicláveis no Brasil?
Existem hoje três tipos de catadores: aquele que ainda está no estágio de condições sub-humanas, que mora no lixão, envolve a família no trabalho. Essa situação foi até explorada em uma novela recente. Outro tipo é aquele que não vive no lixão, mas fica nas ruas, abre sacos de lixo, busca o que tem de valor (mesmo sem ter os equipamentos de proteção), coloca no carrinho e vai vender para o intermediário.
E temos o catador que está em um estágio mais avançado, que está numa associação ou cooperativa, tem um local para receber material. Muitas vezes ele também busca, mas de forma ordenada, em um condomínio que já faz a coleta seletiva, no comércio. Na verdade, esse catador não trabalha com lixo: trabalha com materiais recicláveis que já foram previamente separados. Ou então ele leva o material para um galpão e separa, por exemplo, o papel branco do colorido, o PET dos outros plásticos, o metal do alumínio. Quanto maior a separação, maior será o interesse da indústria e o valor na comercialização.
De forma geral, temos avançado muito, principalmente porque a profissão ‘catador de material reciclado’ foi reconhecida e regulamentada [pelo governo federal] há três ou quatro anos. E observamos que parte deles já se regularizou.
As associações e cooperativas são muito interessantes, pois contribuem para a organização de uma população marginalizada, que trabalham em péssimas condições. Falo não somente de equipamentos de proteção individual (EPIs), mas também de trânsito, das pessoas que trabalham na rua e estão, por vezes, sujeitas a acidentes (ou são confundidas com mendigos de rua).
Em 2011, Minas Gerais instituiu o ‘Bolsa-Reciclagem’ por meio da Lei 19.823. Como surgiu e em que consiste o projeto?
Os catadores já tinham a profissão reconhecida, mas queríamos avançar. A ideia base do projeto é que eles prestam um grande serviço ambiental. Os catadores deveriam ganhar não só pelo que comercializam, mas pela contribuição prestada (devolvendo material para o setor de produção).
Ao coletar papel, por exemplo, recursos naturais são poupados, árvores não precisam ser cortadas para a produção de celulose. Alguns argumentam: “essa árvore é eucalipto, própria para isso”. Mas para plantar o eucalipto, muitas vezes é necessário desmatar. Outro ponto: o ciclo de produção a partir do papel reciclado é muito mais econômico, do ponto de vista financeiro e energético.
Se analisarmos o caso da lata de alumínio, então! O ciclo da produção a partir do alumínio reciclado gera uma economia de 95%, se comparamos com a produção a partir do minério (bauxita). É muito significativa. No caso do plástico, estamos economizando petróleo e gerando menos resíduos.
As prefeituras mineiras pagam, em média, R$ 150,00 por tonelada de lixo coletada e despejada em aterros. Em São Paulo e Rio de Janeiro é ainda mais caro. Então, ao fazerem esse trabalho, os catadores prestam um serviço público aos cofres municipais e ao meio ambiente.
Foi ai que surgiu a proposta do Bolsa-Reciclagem, desenvolvido pelo governo de Minas (através da FEAM), de acordo com a teoria da prestação de serviços ambientais. Ou seja: o Estado vai pagar por serviços ambientais para cada tonelada de papel, plástico, vidro, papelão ou metais que for reintroduzida no ciclo. Não é por tonelada coletada, só para o que voltar realmente para a indústria.
Muitos compararam o ‘Bolsa-Reciclagem’ a iniciativas como o ‘Bolsa-Família’, de caráter assistencialista.
De fato, gerou uma discussão interessante. A palavra ‘bolsa’ tem sido muito usada, geralmente ligada ao assistencialismo. Hoje o ‘Bolsa-Família’ é muito forte. Fica essa ideia. Algumas pessoas vieram com perguntas neste sentido: ‘é uma política assistencialista?’. Não. No caso do ‘Bolsa-Reciclagem’, não é. Ele está muito mais ligado ao sentido de bolsa de valores. É uma prestação de serviço, e são remunerados por ela. Um negócio.
O primeiro passo foi cadastrar as associações e cooperativas. Já temos mais de uma centena. Para merecer a bolsa, é necessário um mínimo de organização, porque precisa emitir nota fiscal. Esse cadastro foi feito pelo Centro Mineiro de Referência em Resíduos (CMRR). E a verdade é que o projeto está transformando esses catadores em pequenos empresários.
O senhor apresentou, no último mês, um trabalho que avalia o andamento do projeto. Quais os principais resultados obtidos?
O estudo avalia o período de um ano, entre julho de 2012 a junho de 2013. A Lei 19.823 é de novembro de 2011, mas só foi regulamentada em 5 de junho de 2012. O Estado começou a pagar o benefício a partir do segundo semestre de 2012. Neste um ano de aplicação prática do projeto, 55 associações, com um total de 1100 catadores, conseguiram se regularizar e receberam o auxílio. Juntas, elas encaminharam para indústria 30 mil toneladas de material e receberam por essa comercialização 10 milhões de reais. O Estado, a título de pagamento por serviços, pagou 4 milhões nesse mesmo período. O que perfaz um total de 14 milhões em rendimentos para essas associações.
Em média, cada catador recebeu 1,5 salários/mês nesse período. Isso demonstra que vale a pena investir em associações. Muitos desanimam por causa da burocracia [emissão de nota]: mas vejam, ganharam 40% a mais com o Bolsa-Reciclagem. Hoje o número de cadastrados já chegou a uma centena e queremos avançar.
O senhor disse anteriormente que o projeto está muito mais ligado à ideia de bolsa de valores. Como funcionaria, na prática?
O que acontece é o seguinte: a indústria não compra pequenas quantidades. E a ideia do ‘Bolsa’ é fazer com que os recicláveis em Minas Gerais possam realmente funcionar como uma bolsa de valores. Por quê? Porque hoje catadores e associações ainda dependem de um grande intermediário para vender para a indústria. A indústria não compra ‘picado’.
A proposta é viabilizar, ainda em 2014, um sistema que diga: temos por mês duas mil toneladas de papel, um pouco está aqui, um pouco ali. O frete passaria buscando, igual acontece na bolsa de Londres. Quando comercializam a saca de café, ela está aqui no Sul de Minas, não em Londres. Um pouco está no porto de Santos, outro em Paranaguá, uma quantidade está no porto da Colômbia, mas eles comercializam em bloco e vão buscar.
Nossa ideia é essa também. O Centro Mineiro montaria o sistema e diria para a indústria: temos tantas toneladas. O material não está no Centro Mineiro, mas espalhado como as demais commodities. Assim, é possível vender direto, ‘em bloco’ e com melhor preço.
É possível que o projeto se espalhe por todo o país?
Costumo dizer: este é o projeto (entre os que conheço) que melhor reflete o conceito de sustentabilidade. Ele une os aspectos econômico, ambiental e social. Por enquanto, está apenas em Minas Gerais, mas acredito que possa sim se espalhar.
Fui convidado para participar da 3ª Conferencial Nacional do Meio Ambiente, como palestrante, representando o meio acadêmico e a Escola Superior Dom Helder Câmara. Na ocasião, falei sobre a importância de se fazer a segregação dos resíduos e apresentei o caso de Minas Gerais. Foi muito interessante, pois a proposta foi incluída nas recomendações da 3ª Conferência, a ideia de valorização dos serviços prestados foi aprovada.
Precisamos ampliar a implementação de atividades que venham a contribuir para que os materiais recicláveis não parem no lixo, mas sejam objeto de segregação na fonte. Gostaria, inclusive, de montar um sistema de coleta na Dom Helder Câmara, instituição onde leciono. Treinar funcionários e alunos, fazer um trabalho de sensibilização, elaborar um projeto de pesquisa, mensurar a quantidade de reciclados que é possível separar mensalmente, qual o valor desse material e do serviço ambiental prestado.
Às vezes, a quantidade em uma instituição não é significativa, mas quando avaliamos em conjunto, passa a ser. A questão de resíduos é, ao mesmo tempo, muito simples e muito complexa. Você diz: “é só a pessoa não jogar os recicláveis no lixo comum. É só jogar ‘separado’”. Mas além de dizer, você tem que estar preparado. Onde vou jogar o papel? É preciso uma infraestrutura. E mudar o habito de uma pessoa já é algo difícil, ainda mais de uma coletividade.
Redação Dom Total
Nenhum comentário:
Postar um comentário