segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Um voo sobre São Paulo onde pouco se vê

Sobrevoando a terra das obtusas aflições, dos desmazelos e das comoções baratas.



O desafio de voar sobre uma metrópole insana e enxergar além das aparências. (Foto: Arquivo)
Por Ricardo Soares*

Ah, os helicópteros! Quantos deles sobre os céus de São Paulo, meu senhor. Se, por um acaso, for lhe concedida a honra de embarcar em um deles, o que veria vossa senhoria, então, ao flanar lá de cima sobre nós? A que conclusões chegaria sobre nós e os nossos destinos? Imagine, meu senhor, que possa pegar uma dessas máquinas voadoras em quaisquer um dos quase 300 helipontos que existem na cidade. Escolha um, a esmo, e voe, voe, voe, até o combustível humano acabar. Vá de norte a sul, do oeste ao nosso leste tão combalido e vamos ver o que verá.

Importante é dizer que não basta ver o que todos enxergam todos os dias quando sobrevoam a cidade. Os repórteres de trânsito e as suas aflições, as polícias e as suas detenções ou mesmo aqueles homens da luz que vivem a verificar as nossas linhas de transmissões de energia. O importante não é ver o que eles verificam, constatam, reportam, socorrem ou detectam. O importante é ver lá de cima entre a maré insana dos automóveis, caminhões e ônibus, todas as nossas obtusas aflições, nossos desmazelos, nossas comoções baratas em busca de bens tão caros e a aqueles que não se compram por mais que o dinheiro seja farto.

É sim, meu senhor. São Paulo é a terra das difusas sensações, do corre-corre e do leva e trás. É a terra das poluídas oportunidades, das diluídas adversidades, o rincão do contra e do a favor, do estupor, da fúria, da angústia, do amor e da violência. Se estou aqui a gastar tanto verbo com uma cidade tantas vezes vilipendiada ou bem tratada por palavras é porque eu o estou desafiando a voar sobre essa metrópole insana e tentar enxergar sobre ela muito mais do que ela contem nas aparências.

Diz o dito popular brasileiro que as aparências sempre enganaram, mas em São Paulo essa afirmação é assaz duvidosa. Aqui muitas vezes o que parece ser é mesmo. Como quando o senhor avista aí de cima almofadinhas ocupados a pensarem na grana que fizeram e vão fazer. Ou quando vê as madames precatórias em busca do luxo sempre achado no seu vasto interior esvaziado. Ou quando vê  imundos policiais corruptos que assassinam e esfolam para impor suas mortais autoridades. 

Quanto pode não se ver daí de cima embora enxergue-se muito. Motoboys que morrem como moscas, traficantes de baixa patente que fogem, ambulâncias que correm, caminhões que andam na contramão, seguros que morrem de velhos, velhos que caem dos ônibus, ônibus que caem em barrancos, barrancos que desabam sobre barracos, barracos que se incendeiam em favelas, favelas que se multiplicam na proporção em que nelas as leis não se aplicam.

Ah, os helicópteros. Pudessem eles nos fazerem enxergar tudo o que não vimos meu senhor. Pudessem eles num rápido voo nos levarem ao passado onde haveria tempo de consertar erros que iriam reverberar no futuro. Agora meu senhor nos restam as tristes marginais congestionadas, enormes multidões desorientadas a olharem para cima para o vosso reluzente helicóptero que passa. É pra achar graça?
* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC - Empresa Brasil de Comunicação.

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