Músico mineiro apresenta a sua ‘Viola de Ponta Cabeça’ hoje (26), no Sesc Pompéia de São Paulo, templo dos bambas da música do Brasil e do mundo.
Sodré (centro) se apresenta com o gaitista Gabriel Grossi e o guitarrista Toninho Horta (Foto: Divulgação) |
Por Júlio Maria*
A viola de Fernando Sodré fala, tem duas asas e umas 37 cordas. Soa como se tivesse acabado de sair de um acordo de encruzilhada com o coisa ruim, daqueles em que os bluesmen do Mississippi e os violeiros de Mato Grosso vendem a alma em troca de glórias. Se quisesse mitificar a própria existência, esse jovem de Minas Gerais teria um século de cultura a seu dispor. Mas a explicação do fenômeno do feitiço que brota de sua viola é bem mais terrena. Fernando Sodré esteve ocupado demais para procurar o belzebu nas esquinas de Belo Horizonte. Afinal, ele tinha que estudar.
Uma das linguagens mais originais da safra de novos violeiros que têm libertado o instrumento do interior das raízes profundas sem cortar suas árvores vem do instrumento de Sodré. Aos 36 anos, ele chama seu terceiro álbum daquilo que realmente faz em dez faixas delirantes: Viola de Ponta Cabeça. O show único para lançá-lo em São Paulo será domingo, 26, às 19 h, no teatro do Sesc Pompeia.
O processo de revirar o símbolo de uma cultura inteira do avesso sem traumatizá-lo não é tarefa fácil. Fernando estuda há anos a linguagem do jazz e a da música brasileira e o fato de ter começado com um mestre do choro em sua terra, Sebastião Idelfonso, e não querendo ser um novo Almir Sater ou Tião Carreiro fez sua cabeça funcionar em outro registro desde sempre.
Seu talento é mais conceitual do que virtuosístico, está mais no resultado do todo do que nos solos do indivíduo. Seu instrumento é limitado por natureza, tem uma extensão de escalas curta e, por opção de Sodré, uma afinação fixa que os sertanejos chamam de Cebolão, quando todas as cordas soltas fazem soar o acorde de mi maior. A outra também muito usada pelos violeiros clássicos seria a Rio Abaixo, em sol maior, mas Sodré prefere levar ao palco apenas um instrumento. Tudo até aqui jogando contra o conceito com fortes nuances de jazz que se ouve no disco – a não ser que alguém desse o pulo do gato.
Encontro de craques
A formação de grupo instrumental brasileiro, ou de jazz, sustentando as ideias sugeridas pela viola é o pulo do gato. Afinal, foi a bateria de um craque de Belo Horizonte chamado Esdra Nenem e o baixo fera de Enéias Xavier que demarcaram o novo território. “Eu iria fazer um disco de viola solo até tocar com esses caras”, diz Sodré. Estava resolvido: onde as mãos do violeiro não chegassem, seus escudeiros chegariam. “Foi um disco em que me arrisquei demais”, considera.
Um risco calculado e em grupo. Viola de Ponta Cabeça, o tema de sua autoria que empresta nome ao projeto, dobra a melodia com o piano de Írio Junior e investe em um ponteio mais harmônico do que melódico, apesar das convenções de passagem anunciarem encrenca à vista nestes momentos. A segunda, Chamaminas, também sua, foi feita com notas prolongadas – o que seria mais uma limitação à viola não tivesse a gaita de Gabriel Grossi sustentando notas que seriam impossíveis à viola de Sodré.
As composições próprias terminam com Sagarana, talvez a única com intenções bem de passagem de viola caipira. O que se tem a partir das outras reflete o olhar de Sodré para os arranjos, explicando sua frase sobre ser este um disco de altos riscos.
Lamento do Morro, de Garoto, decreta a liberdade do tema original com impressionante maturidade, talvez por ser o choro, e não a música sertaneja, a verdadeira música de raiz de Fernando Sodré.
O garoto de Belo Horizonte, filho de pais que nada tinham a ver com a música, descobriu a viola ouvindo o também mineiro Renato Andrade. Sem professor, vendeu uma bicicleta para comprar seu primeiro instrumento. Sebastião Idelfonso foi seu primeiro mestre, mesmo sendo ele do choro e do violão. Aos 18 anos, ouvia os chorões que admirava e ficava em seu quarto de oito a dez horas por dia tirando tudo na viola.
Foi estudar por partituras logo depois, aprender viola erudita, piano e canto, mas sua personalidade já havia sido formada. Sempre imerso em pesquisas, chegava sempre a uma linguagem jazzística quando tentava elaborar melhor uma ideia. E não deixou de ir atrás do espírito dos grandes, virando os próprios Almir Sater e Tião Carreiro de ponta cabeça.
Turbulência nas alturas
O risco do álbum atingiu talvez seu grau mais elevado em Samba do Avião. Mais uma vez de entrada livre, solta, cheia, quebrada, os músicos criam uma tensão até desaguarem na melodia pacificadora de Tom Jobim. Seria a partir daí mais um Samba do Avião a decolar em céu de brigadeiro não fossem as turbulências do jazz voltarem nas alturas, com o delírio de uma tripulação em êxtase.
O convidado especial, a quem Sodré pede a bênção em um vídeo que mostra os bastidores da gravação, é o conterrâneo Toninho Horta. Sua guitarra e seu violão aparecem em Party in Olinda, uma das inspirações sublimes de Toninho, dialogando com a viola em solos intervalados que se tornaram uma marca de sua sonoridade. Um feitiço que nem sob encomenda, na encruzilhada, teria o mesmo resultado.
A viola de Fernando Sodré fala, tem duas asas e umas 37 cordas. Soa como se tivesse acabado de sair de um acordo de encruzilhada com o coisa ruim, daqueles em que os bluesmen do Mississippi e os violeiros de Mato Grosso vendem a alma em troca de glórias. Se quisesse mitificar a própria existência, esse jovem de Minas Gerais teria um século de cultura a seu dispor. Mas a explicação do fenômeno do feitiço que brota de sua viola é bem mais terrena. Fernando Sodré esteve ocupado demais para procurar o belzebu nas esquinas de Belo Horizonte. Afinal, ele tinha que estudar.
Uma das linguagens mais originais da safra de novos violeiros que têm libertado o instrumento do interior das raízes profundas sem cortar suas árvores vem do instrumento de Sodré. Aos 36 anos, ele chama seu terceiro álbum daquilo que realmente faz em dez faixas delirantes: Viola de Ponta Cabeça. O show único para lançá-lo em São Paulo será domingo, 26, às 19 h, no teatro do Sesc Pompeia.
O processo de revirar o símbolo de uma cultura inteira do avesso sem traumatizá-lo não é tarefa fácil. Fernando estuda há anos a linguagem do jazz e a da música brasileira e o fato de ter começado com um mestre do choro em sua terra, Sebastião Idelfonso, e não querendo ser um novo Almir Sater ou Tião Carreiro fez sua cabeça funcionar em outro registro desde sempre.
Seu talento é mais conceitual do que virtuosístico, está mais no resultado do todo do que nos solos do indivíduo. Seu instrumento é limitado por natureza, tem uma extensão de escalas curta e, por opção de Sodré, uma afinação fixa que os sertanejos chamam de Cebolão, quando todas as cordas soltas fazem soar o acorde de mi maior. A outra também muito usada pelos violeiros clássicos seria a Rio Abaixo, em sol maior, mas Sodré prefere levar ao palco apenas um instrumento. Tudo até aqui jogando contra o conceito com fortes nuances de jazz que se ouve no disco – a não ser que alguém desse o pulo do gato.
Encontro de craques
A formação de grupo instrumental brasileiro, ou de jazz, sustentando as ideias sugeridas pela viola é o pulo do gato. Afinal, foi a bateria de um craque de Belo Horizonte chamado Esdra Nenem e o baixo fera de Enéias Xavier que demarcaram o novo território. “Eu iria fazer um disco de viola solo até tocar com esses caras”, diz Sodré. Estava resolvido: onde as mãos do violeiro não chegassem, seus escudeiros chegariam. “Foi um disco em que me arrisquei demais”, considera.
Um risco calculado e em grupo. Viola de Ponta Cabeça, o tema de sua autoria que empresta nome ao projeto, dobra a melodia com o piano de Írio Junior e investe em um ponteio mais harmônico do que melódico, apesar das convenções de passagem anunciarem encrenca à vista nestes momentos. A segunda, Chamaminas, também sua, foi feita com notas prolongadas – o que seria mais uma limitação à viola não tivesse a gaita de Gabriel Grossi sustentando notas que seriam impossíveis à viola de Sodré.
As composições próprias terminam com Sagarana, talvez a única com intenções bem de passagem de viola caipira. O que se tem a partir das outras reflete o olhar de Sodré para os arranjos, explicando sua frase sobre ser este um disco de altos riscos.
Lamento do Morro, de Garoto, decreta a liberdade do tema original com impressionante maturidade, talvez por ser o choro, e não a música sertaneja, a verdadeira música de raiz de Fernando Sodré.
O garoto de Belo Horizonte, filho de pais que nada tinham a ver com a música, descobriu a viola ouvindo o também mineiro Renato Andrade. Sem professor, vendeu uma bicicleta para comprar seu primeiro instrumento. Sebastião Idelfonso foi seu primeiro mestre, mesmo sendo ele do choro e do violão. Aos 18 anos, ouvia os chorões que admirava e ficava em seu quarto de oito a dez horas por dia tirando tudo na viola.
Foi estudar por partituras logo depois, aprender viola erudita, piano e canto, mas sua personalidade já havia sido formada. Sempre imerso em pesquisas, chegava sempre a uma linguagem jazzística quando tentava elaborar melhor uma ideia. E não deixou de ir atrás do espírito dos grandes, virando os próprios Almir Sater e Tião Carreiro de ponta cabeça.
Turbulência nas alturas
O risco do álbum atingiu talvez seu grau mais elevado em Samba do Avião. Mais uma vez de entrada livre, solta, cheia, quebrada, os músicos criam uma tensão até desaguarem na melodia pacificadora de Tom Jobim. Seria a partir daí mais um Samba do Avião a decolar em céu de brigadeiro não fossem as turbulências do jazz voltarem nas alturas, com o delírio de uma tripulação em êxtase.
O convidado especial, a quem Sodré pede a bênção em um vídeo que mostra os bastidores da gravação, é o conterrâneo Toninho Horta. Sua guitarra e seu violão aparecem em Party in Olinda, uma das inspirações sublimes de Toninho, dialogando com a viola em solos intervalados que se tornaram uma marca de sua sonoridade. Um feitiço que nem sob encomenda, na encruzilhada, teria o mesmo resultado.
*Júlio Maria é Editor de Música do jornal O Estado de S. Paulo.
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