terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O primeiro beijo a gente nunca esquece

O dia em que a Holanda, quem diria, se enfureceu com um beijo gay na televisão.



O primeiro casamento gay na TV holandesa também foi motivo de escândalo. (Foto: Arquivo)
Por Lev Chaim, de Amsterdã*

Sim, tudo começou com um beijo que foi o maior escândalo. Muitos ligaram para o canal de TV que transmitiu a cena, principalmente as mães, reclamando dela ter ido ao ar às 20 horas - horário em que os adolescentes ainda estavam acordados. Aconteceu numa novela holandesa há alguns anos. Um detalhe importante:foium beijo entre dois homens, personagens da novela.

Quem pensou que a Holanda pudesse se enfurecer com uma cena daquelas? Pela sua fama de liberal, de tolerar a maconha para uso próprio e pelas prostitutas nas janelas,apenas de calcinha e sutiã, jamais se poderia imaginar uma coisa desta, não é mesmo? A tolerância holandesa é um caso a parte. Tolera-se, mas não misture o gado que dá bode. É uma tolerância regrada ou uma intolerância disfarçada. Mas, com o fenômeno da internet, as barreiras começam a cair.

Em 2001, a Holanda adotou o casamento gay, mas a aceitação na prática não foi unânime, caso se examine a coisa mais de perto. Na semana passada, a novela mais famosa do país, GTST, transmitiu a cena de um casamento entre dois homens – o primeiro na história da televisão holandesa, entre um investigador policial com o dono de uma danceteria. Após a união civil, aconteceu o beijo.O que mais se ouviu foi uma exclamação e a frase: "eles nem parecem..."

E tudo isto às 20 horas. Os produtores disseram que a novela é feita para a diversão e quando aborrece não dá certo e nem ibope. Mas,desta vez, não foi o caso. Não se pode esquecer de um detalhe interessante: a dupla gay da novela não tem "os cotovelos quebrados",  ou como se diz no Brasil, não é “desmunhecada”. Nada dos famosos "estereótipos" mostrados tanto na TV ou no cinema durante muito tempo.

São dois personagens alegres, masculinos, com apenas alguns momentos "controversos", principalmente quando se beijam na boca. É claro que pode parecer estranho ver duas pessoas se beijando em público, ainda mais sendo do mesmo sexo. Ai, lembro-me de meu pai que sempre falava: “nada mais feio e vulgar que um casalzinho se beijando e se esfregando em público”. Isto sobre homem e mulher. Dou razão a ele. Mas na novela, agora, o objetivo é tentar ultrapassar preconceitos renitentes, para não dizer hipócritas.

Os homossexuais ficaram há tempos tolhidos, apartados e só mostrados como tipos raros. Agora tem-se o espaço e o interesse em mostrá-los como pessoas e não bichos exóticos. Principalmente após 2001, quando o país foi o primeiro do mundo a legalizar o casamento gay. Caso não se tente expandir as fronteiras, de uma forma ou de outra, a real tolerância nunca irá se levantar acima do patamar existente.

É claro que o "cinturão bíblico da Holanda" – a região que vem do norte e corta o país transversalmente em direção ao sul - não assistiu ao primeiro casamento gay da televisão holandesa. É ali que vive a maioria dos ortodoxos calvinistas do país, onde vigora até hoje a proibição de se ver televisão. Nesta região, todos vão à igreja duas vezes aos domingos, rezar e cantar salmos.

É óbvio que a cena, via telefone e outros aparelhos, irá circular e atingir um número cada vez maior de pessoas.Como também está claro que os calvinistas ortodoxos, caso fiquem sabendo do que aconteceu na TV,talvez irão pensar que todos aqueles pecadores mereçam o fogo do inferno ou algo parecido.

Mas a Holanda, antes mesmo de ser tolerante, já era uma democracia, com governos de coalizões de partidos e ideias.Ninguém pode tolher a liberdade do outro desde que a coisa não esteja acontecendo em sua própria casa. Mas nem por isto, a Holanda deixou ainda de ser o que ela sempre foi: um país calvinista, com diversas restrições e gradações, para diversas coisas, pessoas e lugares.

Eu e mais de dois milhões de pessoas, somente na Holanda, paramos para assistir ao primeiro casamento gay na televisão holandesa que, segundo os produtores da novela, também foi assistidoem diversos países do mundo, via facebook e Youtube. Quem esperava um terremoto, decepcionou-se. Os protestos ficaram hibernados nos círculos mais íntimos.

A minha vizinha do lado, por exemplo, achou tudo muito engraçado. Ela até disse que só em algumas frações de segundos sentiu a falta da noiva em cena. Logo em seguida, ela se acostumou com tudo. Eu, que não havia pensado nisto, achei graça. De uma certa forma, tudo aquilo fascinou o público já que a audiência foi tão grande.

Um vizinho, duas casas mais distantes, um senhor viúvo, achou tudo ridículo e criticou a transmissão, dizendo que as suas netas, talvez, ainda pudessem estar despertas. Ele só respondeu porque lhe perguntei se ele havia assistido. Com a cara fechada,ele perguntou-me se eu também havia assistido.“Meu senhor, quando muito menino, parei para assistir o homem descer na lua, por que não agora?” Ele fez uma careta.

Um dos melhores jornais do país, o NRCHandelsblad, já havia publicado na semana anterior, em seu caderno de Cultura, um grande artigo sobre o assunto, acompanhado da foto do par romântico da novela: os dois homens, que iam se casar, vestidos com terno branco. Pelo inédito da coisa, até mesmo para a televisão holandesa, parece que a cena foi muito bem preparada em termos de relações públicas.

Mas muito mais estranho do que tudo isto, foi a notinha dos jornais que passou totalmente desapercebida para a maioria dos holandeses, até mesmo para os ortodoxos calvinistas, talvez preocupados apenas com o seu mundinho.

Era uma nota da Organização Oxfam Internacional, com base em dados da Escola Econômica de Paris: “As 85 pessoas mais ricas do mundo, com uma fortuna de um trilhão e 200 bilhões de euros, possuem o mesmo que a soma de bens de 3 bilhões e 500 milhões de pessoas em todo o planeta”.

Quantas vezes alguém pode ser tão mais rico? É claro que pode, mas tanto assim? Isto, sim, é que me perturba e muito.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou 20 anos para a Rádio Internacional da Holanda, país onde mora. Escreve todas às terças-feiras no Dom Total.

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