“E essa água, quando chega?”, interrompe o capataz do sítio, que prossegue, num monólogo: “Ninguém sabe…”.
Por Marcia Dementshuk
“Sem dúvida, com a transposição do rio São Francisco será oferecida segurança hídrica para o Nordeste”, garantiu o diretor-presidente da Agência Nacional das Águas (ANA), Vicente Andreu Guillo, durante nossa entrevista. A aposta do governo federal é alta: o orçamento atual da transposição é de R$ 8.158.024.630,97 (o dobro do previsto inicialmente), financiados pelo Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC I e II). Trata-se do maior empreendimento de infraestrutura hídrica já construído no Brasil, que mudará para sempre a cara da região.
Neste cenário, a notícia de que seria possível transportar a água do Rio São Francisco para regiões mais secas transformou-se em esperança para os nordestinos de todas as épocas. Fala-se nessa obra desde os tempos do Império, quando, em 1877, o intendente do Crato, no Ceará, apresentou para dom Pedro II um projeto que levaria águas do Rio São Francisco até o rio Jaguaribe, no seu estado.
A obra foi iniciada 130 anos depois, durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva, com base no projeto elaborado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Depois do investimento inicial, de cerca de R$ 4 bilhões, o rendimento dos trabalhos diminuiu em 2010 por problemas de adequação do Projeto-Base à realidade da execução (leia mais aqui), e novas licitações precisaram ser feitas. Somente no final de 2013, conforme o Ministério da Integração Nacional, responsável pelo projeto, as obras foram 100% retomadas.
Hoje, o empreendimento aponta 51% de avanço, e o orçamento dobrou. A nova previsão para a conclusão é em dezembro de 2015, quando as águas deverão alcançar afinal o leito do rio Paraíba, no Eixo Leste, e o reservatório Engenheiro Ávidos, pelo Eixo Norte, ambos na Paraíba.
O projeto prevê que as águas captadas do Rio São Francisco em dois canais de aproximação (no Eixo Norte, em Cabrobó e no Eixo Leste, no reservatório de Itaparica, em Floresta, ambos em Pernambuco) serão conduzidas pelos canais até os reservatórios, de onde abastecerão dezenas de municípios dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, aproveitando a rede de saneamento existente. Projetos referentes a tomadas para uso difuso (pontos de tomada de água captadas ao longo dos canais para abastecer as comunidades instaladas nas proximidades) ainda estão em fase de elaboração. O Ministério da Integração ainda não definiu que pontos serão esses, nem os locais exatos de captação. Da mesma forma, os valores finais do custo desta água para a população ainda estão em estudo por parte do governo federal.
A realidade, porém, é que há mais de dois anos, muitos moradores dos municípios do semiárido nem sequer têm água nas torneiras; usam a água distribuída por caminhões-pipa, de poços particulares ou públicos (a maioria com água salobra) ou da chuva (quando chove).
Em Caiçara, distrito de Custódia, Pernambuco, próximo ao Lote 10, que corresponde a atual Meta 2L, da construção (veja o mapa), a população toma a água enviada pelo Exército, em caminhões-pipa, uma vez por semana. Toda semana é a mesma cena: a água é despejada em uma cisterna central, e cada morador tem que ir buscar – há carroceiros que cobram em torno de R$ 5,00 ou R$ 7,00 por viagem.
O riacho Custódia passa próximo da casa de Manoel Rodrigues de Melo, agricultor de 52 anos, mas o fio de água que resta é salobra, e só serve para lavar a casa ou os estábulos. “A água boa vem de Fátima, a uns 40 quilômetros daqui. O que a gente mais precisa aqui é água, que não tem”, suplica o agricultor. Nessas condições, ele e a esposas criaram oito filhos. Todos partiram em busca de melhores condições de vida. “É muito filho, até parece mentira! Mas antigamente os invernos eram melhores, chovia mais”.
Manoel Rodrigues de Melo, que nunca saiu da região onde nasceu, viu seu terreno ser dividido pelo canal do Eixo Leste: ficou com seis quilômetros de um lado do canal e com a mesma medida do outro. Dono de um sotaque sertanejo carregado, com poucos dentes na boca, as mãos calejadas e a pele castigada pelo sol, Manoel conta que agora os bichos têm de usar a ponte sobre o canal para passar. “Senão, eles ficam ou do lado de cá, ou do lado de lá, ou tem que fazer um volta tremenda lá por baixo, onde tem um lugar pra passar. Mas o que mais a gente espera é essa água que ‘tá’ pra vir. Isso vai mudar a nossa vida aqui. Vai ser muito bom”, diz o agricultor, ansioso.
“A gente tinha água pela torneira, era ruim, mas dava pra limpeza. Mas desde que começou essa construção (referindo-se à transposição) ela foi cortada”, lembra-se a vizinha de Manoel, a dona de casa Maria Célia Rodrigues da Silva, que cuida da mãe doente, com 82 anos. “Nem as cisternas não enchem. Estamos com dois anos de seca”, completou. A água encanada provinha de um poço escavado em outro vilarejo próximo de Caiçara, Fiúza, mas ela não sabe dizer se foi cortada em função das obras da transposição, ou se o poço secou. Mesmo com o encanamento de sua casa enferrujado e sem saber se terá água para beber no dia seguinte, a vida de Maria Célia continua. Ela não teve filhos. Cria alguns bodes, cabras e galinhas no quintal da casa e conta com o dinheiro da aposentadoria de sua mãe para o sustento das duas. Trabalhava na roça, mas nada mais resistiu à seca de dois anos.
A tocadora de pífano Zabé da Loca nos recebeu às vésperas de completar 90 anos. Quando tinha 79 anos, 25 dos quais passados em uma gruta, na Serra do Tungão, próximo a Monteiro (PB), Zabé se tornou conhecida no mercado de música regional. Chegou a dividir o palco com músicos como Hermeto Pascoal e Gabriel Pensador em shows no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Paraíba e Brasília.
Típica sertaneja, que jamais conheceu o conforto de abrir uma torneira de onde corresse água em abundância, Zabé teve 14 irmãos, oito dos quais morreram por doenças originadas pela falta de água e desnutrição. Fumante inveterada, persistiu no hábito mesmo depois do tratamento de combate a um enfisema pulmonar e à pneumonia e não deixou de enrolar um cigarrinho durante a visita, enquanto lembrava: “Nessa serra sempre teve água da chuva que empoçava nas pedras. Mas tinha anos que não encontrávamos água em canto nenhum. A gente tinha que ir até o rio (afluente do rio Paraíba, próximo da nascente) pegar”.
Quando comentamos sobre a transposição do rio São Francisco ela reagiu: “esse negócio existe mesmo?”
Para o ex-presidente da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, Luiz Gabriel Azevedo, o custo de operação da água da transposição é elevado e requer investimentos vultosos, quando comparado a outras alternativas. “Parte do pacto, quando se pensou esse projeto, é de que os estados fariam um trabalho forte de racionalizar o uso dentro de seus territórios, de melhorar o sistema de gestão; e os estados estão aquém dessa expectativa”, analisa. Ele alega que os estados deveriam investir mais em obras que garantissem os recursos hídricos, como manutenção e construção de açudes, estudos para perfurações de poços e principalmente em obras de saneamento e rede de distribuição de água.
“Não valerá à pena trazer uma água cara para se desperdiçar do outro lado. Não dá para executar um projeto complexo se os recursos dos açudes não forem bem usados, se não houver um sistema de distribuição, se não se tem um sistema de gestão eficiente nos estados que vão receber para gerir a água”, complementou Luiz Gabriel Azevedo.
Por Lei, o órgão competente que determinará como a água será distribuída é o Conselho Gestor do Projeto de Integração do Rio São Francisco, instituído pelo Decreto 5.995/2006. Esse Conselho é formado por representantes dos estados beneficiados com o empreendimento – Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará – e tem por objetivo, entre outros, tratar da alocação das águas e dos rateios dos custos correspondentes.
Para o diretor-presidente da Agência Nacional das Águas (ANA) destaca que o Nordeste ainda carece de um conjunto de soluções hídricas, como aproveitamento máximo da escassa água da chuva, o controle do uso das águas dos reservatórios ou a transposição de águas de outras bacias hidrográficas, já que a escavação de poços do semiárido é considerada inviável. De acordo com o relatório de impacto Ambiental do PISF, (RIMA), “a maioria do território semiárido (70% da região) dispõe de pouca água subterrânea e possui solo impermeável, ou seja, absorve pouca água, limitando sua capacidade de disponibilidade. Além desse aspecto, a água, em geral, é de baixa qualidade”.
Cerca de 800 famílias foram deslocadas e receberam indenizações entre cerca de R$ 10 mil a R$ 15 mil para dar passagem às obras da transposição – de acordo com a gerência de Comunicação da CMT Engenharia, empresa responsável pelo acompanhamento das ações de compensação socioambiental do PISF – ao longo dos eixos Norte e Leste, em Pernambuco e no Ceará. De acordo com o supervisor de obras da empresa Ecoplan, Adilson Leal, porém, as terras não entraram na avaliação das propriedades a serem indenizadas por possuírem baixo valor de mercado, segundo a empresa, em função da pouca qualidade da terra para o plantio ou para o pasto, em uma região onde a chuva é escassa. Só as benfeitorias foram ressarcidas.
Em Rio da Barra, distrito de Sertânia, em Pernambuco, comunidade que beira o canal na altura do Lote 11, que corresponde à Meta 2L, (veja o mapa), a população se encontra duas vezes por semana na cisterna pública para se abastecer de água potável proveniente de um poço artesiano cavado pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Um funcionário da prefeitura de Sertânia controla o abastecimento gratuito dos galões trazidos pela população na noite anterior. O local acaba se tornando o ponto de encontro do povoado. Mães carregando baldões chegam com as crianças arrastando baldes menores, carroças carregadas de galões estacionam ao lado e todos aguardam com paciência pelo precioso líquido. Maria José Araújo Pinheiro, uma dona de casa tímida, mas de olhos atentos, aguardava sua vez quando comentou que sua mãe, Creusa Davi da Silva, aceitou a oferta do governo para desocupar suas terras no sítio Chique-Chique. “Eles ofereceram pra ela R$ 14.400, ela pegou e foi morar em Sertânia. Como ela ganha aposentadoria, está bem. Mas pagaram só pela casa”, disse Maria José.
Márcia Maria Freire Araújo vem do outro lado do canal do Eixo Leste da transposição pegar água na cisterna pública de Rio da Barra. Ela chega sempre antes das seis da manhã, na companhia do cunhado que conduz uma carroça puxada a burro onde transportam os galões de água. Andam cerca de dois quilômetros, atravessam o canal por uma ponte provisória e os depositam em uma fila de recipientes que começou a ser formar no dia anterior. Sua família mora em outra propriedade pequena, que teve uma parte indenizada pelo Ministério da Integração Nacional. “Eu não acho que é justo perder um pedaço de terra, mas se é para fazer o bem pra tanta gente, então aceitamos”, conforma-se. Ela vê o lado bom: seu marido, Adilson Salvador, é empregado na construtora SA Paulista como técnico ambiental na transposição. “Ele conseguiu emprego desde o início da obra, primeiro por outra empresa, e agora pela Paulista”, orgulha-se Márcia Maria.
Em outra localidade, na zona rural de Sertânia, os moradores do Sítio Brabo Novo ficaram divididos pelo canal. Pelo menos treze famílias preferiram a remoção para terras acima do reservatório Barro Branco, ainda em fase de retirada da vegetação. Um número bem maior de famílias permaneceu do outro lado do reservatório.
Maria da Conceição Siqueira, viúva, de 51 anos, e seu filho, de 18 anos, deixarão a antiga moradia para trás e irão para Sertânia. “Já recebi R$ 7.500,00 por aquela casinha ali”, diz, apontando para uma casa que ficará submersa pelo reservatório, “e ganhei essa casa aqui. Mas vamos fechá-la e ir embora”. “Fiquei com um pedaço de terra muito pequeno, (cerca de 50m²) não dá pra nada. Meu filho está em tratamento, ele teve um derrame no cérebro e é melhor a gente ficar lá”, diz.
A família das irmãs Lucicléia e Lucinéia Ferreira Florêncio, vizinhas de Maria da Conceição, tomou uma decisão diferente. “Nossa primeira casa era onde agora vai ser o reservatório, e já foi indenizada em 2007. Mas esse reservatório ocupou quase a metade do nosso terreno. Como ainda sobraram terras desse outro lado e esta é uma área liberada, decidimos construir aqui, com o dinheiro da indenização”, contou Lucinéia. Ela não soube informar o tamanho do sítio, mas a nova casa é grande. No terreno persiste uma plantação de palmas (um tipo de cactos que serve para alimentar os animais) e algumas árvores frutíferas. O resto foi perdido: abacaxi, macaxeira, milho, feijão… A irmã, Luciclélia, casou-se e construiu uma casa menor ao lado, onde vive com o marido e uma bebê de nove meses.
Lucinéia, professora, duvida que no futuro haja uma distribuição justa das águas da transposição. “Tem os pontos positivos, mas acho que vão ter os negativos também. Eu penso que com essa água toda vão começar a fazer mais obras por aqui e eu não sei se toda a comunidade vai ter acesso a essa água quando quiser. O pequeno produtor nunca é beneficiado como os grandes proprietários, nunca tem igualdade. E acho que o crescimento vai ser desordenado. A comunidade já tem uma associação de moradores, mas ainda não sabe como abordar esse assunto”, lamentou Lucinéia, dizendo que não há orientação nenhuma dos governos sobre isso.
Na área onde será construído o túnel entre Sertânia e Monteiro, no Lote 12, atual Meta 3L (veja mapa), a retomada das obras em dezembro significou a perda de mais 100 metros de terreno pelos agricultores, além dos 100 metros que já tinham recuado. “Fazer o quê? Os donos já receberam a indenização e agora que vieram construir pediram mais esse pedaço de terra”, explicam Lenilton Cordeiro dos Santos e Quitéria Araújo da Silva, zeladores do sítio Passagem da Pedra, cortado tanto pelo canal da transposição quanto pelo túnel.
No sítio ao lado, Aílton Ferreira de Oliveira cuida do terreno da sogra, que também foi reduzido. “Agora, o gado que sobrou, cinco cabeças, está no curral e come mandacaru, pois não tem mais o que comer por causa da seca, e o terreno ficou pequeno pro pasto”.
“E essa água, quando chega?”, interrompe o capataz do sítio, que prossegue, num monólogo: “Ninguém sabe…”.
Eco Agência
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