O país da cordialidade a cada dia acredita mais na justiça feita com as próprias mãos.
Por Juan Arias*
Não sei se é bom ou se é mau, mas existe uma sensação, cada vez mais visível, de que os brasileiros, pessoas cordiais, estão endurecendo. São só sintomas ainda, mas que começam a afetar a todo o país. Dois episódios ocorridos no último fim de semana são apenas a prova mais recente a justificar esta impressão: nove assaltantes, todos vestindo coletes a prova de balas, foram mortos pela polícia em Itamonte (MG), enquanto outro meliante era linchado e queimado vivo em praça pública, em Pernambuco.
Sempre destaquei que os brasileiros acabam conquistando os estrangeiros por sua capacidade de acolhimento, por sua paciência, sua elasticidade e por sua falta de agressividade, algo que, por exemplo, afeta mais a nós espanhóis, mais impacientes.
Isso se notava até na rua, quando se perguntava algo; nas lojas, onde era atendido com uma grande paciência, algo que deixa a minha filha admirada cada vez que vem de Barcelona para o Brasil : "É que aqui todos são tão amáveis sempre?", me perguntava surpreendida.
Eu mesmo contei mil episódios que vivi agradavelmente no trato com as pessoas nos 15 anos que já estou neste país, escrevendo para este diário, entre elas a solidariedade com quem, em algum momento, precisava de ajuda.
Tudo isso mudou? Talvez ainda não. Os processos de mudança negativos em uma sociedade são lentos, precisam às vezes de anos para se consolidar e costumam ser o fruto amargo de alguma crise que a afeta gravemente, como ocorreu ultimamente em alguns países da União Europeia onde a crise econômica e o desemprego que arrastou consigo fizeram com que ditas sociedades se enrijecessem.
No Brasil, não existe essa situação grave que pudesse explicar esse endurecimento que começa a ser observado nas pessoas já que o país, em muitos de seus parâmetros melhorou e, de modo geral, se vive melhor que há 20 anos. Algo, no entanto, está ocorrendo, embora ainda seja mais bem subterrâneo. Algo que dá a sensação de que as pessoas estão enrijecidas com algo que as levam, por exemplo, a fazer justiça com as próprias mãos ou a parecer menos solidária quando alguém pede ajuda.
Vingança como medicina
Começa a se ver a vingança como uma medicina eficaz, algo sobre o que os sociólogos e escritores começam a alertar. Barbara Musemeci, em seu artigo com o irônico título “Injustiça com as próprias mãos”, publicado no diário O Globo, alerta sobre o momento que o Brasil está vivendo, ao afirmar que “a experiência não deixa dúvidas de que a vingança é um atalho para eternizar a violência”. A socióloga lembra que "a ideia que sustenta a vingança, começa a se enraizar em nossa cultura".
O agudo escritor Veríssimo em seu artigo O Alarme, publicado no mesmo dia e no mesmo diário, adverte que existe um momento nas sociedades em que começa a soar um alarme e que o difícil e perigoso é saber quando esse alarme já se disparou. Usa como exemplo a tragédia judia de Hitler. Quando soou o alarme que pressagiava o Holocausto?
O agudo escritor afirma que diante da “falta de uma sentinela” que nos alerte de que "os bárbaros estão chegando", devemos confiar em nosso instinto. E esse instinto é o que começa a nos avisar que uma verdadeira barbárie se incorpora a uma sociedade que teve sempre vocação de civilização e de convivência.
Estamos vendo, por exemplo, as pessoas defendendo a cadeira elétrica para os “bandidos” e, o que é pior, defendendo o "linchamento" de alguém que roube ou assalte, com a desculpa de que o Estado “lava as mãos” e que os políticos vivem blindados e escoltados e parece que não se inteiram do medo que as pessoas têm na rua, sobretudo nas grandes cidades.
Damos por bem que o policial, só por ser tal, merece ser objeto de violência chegando a se apagar a fronteira entre o policial “corrupto” e o que se esforça para cumprir seu dever.
Uma dureza e violência que exercem até os que assaltam, que já não se conformam em roubar o que passa ao seu lado e acaba lhe ferindo ou lhe matando gratuitamente, como contou a um diário o cidadão que no Aterro do Flamingo, no Rio, um jovem não se conformou em lhe roubar sua motocicleta, mas sim que lhe deixou de presente uma punhalada no peito que podia ter sido mortal.
Por que essa violência acrescentada?
Nos cárceres sempre teve cenas de violência gratuita, mas ao que parece, esses horrores estão se agravando ao mesmo tempo em que a polícia, talvez contaminada por esse despertar da dureza coletiva, também acaba pagando com a mesma moeda invés de ser um elemento de segurança cidadã.
Eu sou um leitor atento às cartas dos leitores dos jornais ou dos comentários nos artigos dos diários on-line que costumam ser um termômetro do humor das pessoas. E também esses comentários estão se radicalizando e cada vez mais, invés das reflexões de outrora, abundam as grosserias e os insultos contra tudo e contra todos. E existem até blogueiros pagos para desacreditar os que pensam de outro modo.
O diapasão da violência está aumentando. Até as favelas pacificadas do Rio estão voltando perigosamente às velhas guerras entre traficantes e policiais.
Nos estádios de futebol, sobe a temperatura da intransigência diante da derrota da própria equipe, provocando agressões dos adversários.
Nas manifestações, que deveriam ser pacíficas, como sempre foram no passado, estão entrando cada vez mais grupos violentos encapuzados. E, ao que parece, incentivados por forças políticas, que deveriam ser as guardiãs da ordem.
Crescem a violência doméstica, a violência contra a mulher e a violência entre adolescentes. A cada dia os meios e comunicação relatam os crimes dentro das mesmas famílias. A violência não só se estende, mas está ficando mais brutal.
Enrijecimento generalizado
Essa sensação de endurecimento em vários camadas começa a preocupar sociólogos e psicólogos e divide às vezes os que deveriam rechaçar esse movimento da sociedade, ao politizar a violência, distinguindo entre a violência simples, que é condenável, da violência social, que poderia ser permitida, aceitando a falácia de que os fins justificam os meios.
Em uma sociedade como a brasileira, destacada por sua capacidade de aceitação do estrangeiro, por seu pouco apreço pelas guerras e por seu gosto pela vida e pela festa, seu exemplo de convivência pacífica entre regiões tão diferentes e seu ecumenismo religioso, a violência estava limitada ao tráfico de drogas e às truculências de uma polícia pouco preparada e, às vezes, corrupta
Por isso, deva ser ouvida com atenção o alerta de Veríssimo a essa espécie de enrijecimento generalizado que começa a ocorrer, e ao qual não estávamos acostumados.
Embora ainda se trata mais de pequenos sintomas, as autoridades responsáveis devem impedir que isso aumente. Todos sabemos muito bem que os incêndios que acabam arrasando os bosques começam com uma bituca de cigarro atirada ao chão. E quando em nosso organismo aparecem sinais de febre, o médico se preocupa em checar o motivo da anomalia.
Todos os fascismos, de direita ou de esquerda, beberam desde sua infância na fonte envenenada da violência gratuita e da intolerância e da vingança.
No Brasil, no delicado e perigoso caminho da agressividade que começa a se formar, nesse intuito de fazer justiça com as próprias mãos, ainda não soou esse alarme, mas os sinais dessa febre registram uma verdadeira intolerância coletiva, que preocupa muito. Talvez nenhuma de nós seja inocente e a sociedade não pode se dividir salomonicamente em vítimas e carrascos.
*Juan Arias é correspondente no Brasil do El País, onde este artigo foi originalmente publicado.
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