Devemos nos deixar guiar pela luz, porque ela sempre nos precede e não conseguimos ver sem ela.
Por Raymond Gravel*
Esta semana ainda quero propor a seguinte exegese sobre o Evangelho de São João que é uma catequese pré-batismal e que nós é oferecida nessa Quaresma do Ano A, o ano de Mateus... Boa leitura!
Escrutínio: o cego de nascença (Jo 9,1-41)
O relato do cego de nascença é uma bela passagem do evangelho... É uma catequese sobre o caminho da fé que se opera após ter encontrado o Cristo ressuscitado. Esse relato evangélico tem o mérito de mostrar que a fé não é algo que se adquire uma vez para sempre; a fé é um longo processo, difícil em alguns momentos, quando o medo e a dúvida persistem, mas que sempre nos faz avançar e que nos obriga a assumir um compromisso. A luz que descobrimos pouco a pouco e que nos ilumina jamais a possuímos completamente; devemos nos deixar guiar por ela, porque ela sempre nos precede e não conseguimos ver sem ela. Penso que é o próprio sentido do evangelho de João: quem não vê por si mesmo, abre-se necessariamente à luz que é Cristo, ao passo que aquele que acredita ver por si mesmo não pode ver a luz que lhe é oferecida gratuitamente: “Então, Jesus disse: ‘Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não vêem, vejam, e os que vêem se tornem cegos’” (Jo 9,39).
Nesta catequese evangélica, João resume todo o percurso de qualquer pessoa que encontra Jesus, que se deixa recriar por ele, que caminha na sua fé descobrindo-o aos poucos, até encontrá-lo como Luz do mundo. Nesse relato, João visa os fiéis da sua comunidade e as dificuldades que eles encontram. Ao reler esta passagem do evangelho, hoje, nos sentimos igualmente concernidos pelas mensagens que ela contém.
1. Quem é o cego de nascença?
É o excluído, o marginalizado, o descrente, o abandonado, o pobre... A primeira pergunta que os discípulos fazem a Jesus é esta: ‘‘Mestre, quem pecou para que nascesse cego: ele ou os seus pais?’” (Jo 9,2). Esta pergunta é a mesma que os cristãos de hoje se fazem em relação ao mal, ao sofrimento e às limitações humanas: o que foi que eu fiz ao bom Deus para que isso me acontecesse? É preciso encontrar culpados para a nossa realidade humana, feita de limitações, de pobrezas e fragilidades. Mas, o Jesus do evangelho não entra nesse raciocínio. Ele diz: “‘Nem ele nem seus pais pecaram, mas isso serve para que as obras de Deus se manifestem nele’” (Jo 9,3). E a ação de Deus consiste em combater o mal em todas as suas formas e em nos curar das nossas limitações e pobrezas. É, portanto, nossa responsabilidade curar e socorrer aqueles que sofrem.
2. Jesus sempre nos precede
Quem não vê não pede nada. Jesus aproximou-se do cego, e o que faz é um gesto de recriação: “Dito isto, Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva” (Jo 9,6). Santo Irineu, no século II, estabelece um paralelo sugestivo entre a criação do primeiro homem e a recriação realizada pelo Cristo Pascal. Ele escreve: “Deus tomou barro da terra e modelou o homem. É por isso que o Senhor cuspiu no chão, fez lama e colocou-a sobre os olhos do cego, mostrando com isso de que maneira aconteceu a modelagem original e, para aqueles que eram capazes de compreender, manifestando a mão de Deus pela qual o homem foi modelado a partir do barro”. Assim, após ter recriado o homem, começa a missão: “‘Vai lavar-te na piscina de Siloé’ (que quer dizer: Enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando” (Jo 9,7). Em poucas palavras João nos diz como se entra no caminho da fé pelo batismo, pela recriação.
3. Os obstáculos da fé
Não é porque o cego vê, que ele se torna fiel e tudo está resolvido. Ele precisa agora atravessar as provas da vida que são feitas de medo, de dúvidas, de rejeição e inclusive de exclusão por parte daqueles que dizem ver, portanto, que são fiéis. Podemos perceber também que Cristo está completamente ausente do caminho da fé do novo crente; o que significa que, na nossa vida cotidiana, no nosso caminho de fé, o Cristo pode parecer estar ausente mais vezes que antes. Estamos em relação com os outros: os vizinhos, os colegas de trabalho, os amigos, a família, outros fiéis, os dirigentes da Igreja. Eles nos fazem perceber que jamais possuímos a luz; podemos refleti-la, e aqueles que acreditam possuí-la são aqueles que menos veem. É, infelizmente, o caso de boa parte das instituições religiosas que definem as regras e as doutrinas que devem ser o caminho de fé dos novos batizados: “Disseram, então, alguns dos fariseus: ‘Esse homem não vem de Deus, pois não guarda o sábado’” (Jo 9,16a).
A religião pode tornar-se a tal ponto um obstáculo à fé que ela pode, em alguns momentos, impedir Deus de falar e o Cristo de curar. É o acontece com o cego de nascença: “Então insultaram-no, dizendo: ‘Tu, sim, és discípulo dele! Nós somos discípulos de Moisés. Nós sabemos que Deus falou a Moisés, mas esse, não sabemos de onde é’” (Jo 9,28-29). Chegamos até a excluí-lo da comunidade de fiéis: “Os fariseus disseram-lhe: ‘Tu nasceste todo em pecado e estás nos ensinando?’ E expulsaram-no da comunidade” (Jo 9,34). Quantas mulheres e homens são ainda hoje condenados pela Igreja, amordaçados, rejeitados e excluídos, porque não se adéquam às normas e doutrinas que os dirigentes lhes impõem?
4. As etapas da fé
Bem no começo do seu caminho, o cego curado balbucia sua fé. Fala para os seus vizinhos do homem que é chamado Jesus (v. 11), aquele que o cura, mas ele ainda não sabe onde encontrá-lo (v. 12). Um pouco mais adiante, confrontado com os fariseus, ele vê melhor. Ele confessa que Jesus é um profeta (v. 17). E, mesmo abandonado pelos seus, por seus parentes que têm medo da instituição (v. 22), o cego curado vai mais longe na expressão da sua fé. Ele ousa dizer aos seus detratores: “‘Se este homem não viesse de Deus, não poderia fazer nada’” (Jo 9,33). Expulso da comunidade, da Igreja, mas sempre a caminho, o Cristo vem novamente ao seu encontro, e trata-se da confissão de fé por excelência: “Encontrando-o, perguntou-lhe: ‘Acreditas no Filho do Homem?’” (Jo 9,35). “Respondeu ele: ‘Quem é, Senhor, para que eu creia nele?’ (Jo 9,36). “Jesus disse: ‘Tu o estás vendo; é aquele que está falando contigo’” (Jo 9,37). “Exclamou ele: ‘Eu creio, Senhor’! E prostrou-se diante de Jesus” (Jo 9,38). O mesmo vale para cada um nós: julgados, rejeitados, condenados e excluídos por aqueles mesmos que acreditam possuir a luz, Cristo nos convida a confessar a fé, porque ele veio para que possamos ver e sua luz não pode ser filtrada por ninguém, nem por nenhuma instituição. Aos fariseus que perguntam a Jesus se eles também são cegos (v. 40), Jesus respondeu: “‘Se fosseis cegos, não teríeis culpa; mas como dizeis: ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece.’” (Jo 9,41).
Concluindo, eu gostaria de citar este longo comentário do cardeal francês Albert Decourtray, que pode ajudar a Igreja a discernir melhor a luz que vem do Cristo ressuscitado: “Jamais homem algum respeitou os outros como este homem. Para ele, o outro é sempre mais e melhor que as ideias recebidas, inclusive os sábios e doutores da lei, tentam reduzi-lo. Ele sempre vê nela ou nele alguém que encontra um lugar de esperança, uma promessa viva, um extraordinário possível, um ser chamado – independentemente das suas limitações, dos seus pecados e, às vezes, dos seus crimes – a um futuro novo. Ele chega mesmo a discernir algum maravilhoso segredo, cuja contemplação o mergulha na ação de graças!
Ele não diz: esta mulher é volúvel, ligeira, sonsa, marcada pelo atavismo moral e religioso de seu ambiente, é apenas uma mulher. Ele lhe pede um copo de água e toma a iniciativa da conversa. Ele não diz: esta é uma pecadora pública, uma prostituta completamente atolada no seu vício. Ele diz: ela tem mais chances para entrar no Reino de Deus do que aqueles que se aferram à sua riqueza ou se jactam de sua virtude e seu saber. Ele não diz: essa não passa de uma adúltera. Ele diz: eu não te condeno. Vai e não voltes a pecar. Ele não diz: este cego paga seguramente suas faltas ou a dos seus ancestrais. Ele diz que nos enganamos completamente em relação a isso, e deixa todo o mundo estupefato, seus apóstolos, os escribas e os fariseus, mostrando claramente como este homem goza do favor de Deus.
Jesus nunca disse: não há nada de bom nesse ou naquele, nesse meio ou naquele. Em nossos dias, jamais diria: esse é um integrista, um modernista, um esquerdista, um fascista, um ímpio, um beato... Para ele, os outros, quem quer que sejam, quaisquer que sejam seus atos, seu estatuto, sua reputação, são sempre seres amados por Deus. Jamais homem algum respeitou os outros como este homem. Ele é único. Ele é o Filho único d’Aquele que faz brilhar o sol sobre bons e maus.”
Réflexions de Raymond Gravel
*Raymond Gravel é padre da Diocese de Joliette, Canadá. O texto é baseado nas leituras do 4º Domingo da Quaresma – Ciclo A do Ano Litúrgico (30 de março de 2014).
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