A tragédia do descaso pela vida protagonizada por polícia e bandidos é traço típico do país.
Por David Paiva*
Cláudia da Silva Ferreira, 38 anos, auxiliar de serviços gerais, mãe de quatro filhos, saiu de casa na manhã de domingo, 16, para ir à padaria. No caminho, foi atingida por duas balas perdidas num tiroteio entre policiais militares e bandidos, no Morro da Congonha, Mangueira, Rio de Janeiro. "Socorrida" e empurrada para o porta-malas de um carro da PM, Cláudia caiu e foi arrastada pelo carro por 250 metros. Os condutores do veículo foram alertados, mas só pararam no primeiro semáforo.
Muito ferida, Cláudia chegou morta ao Hospital Carlos Chagas. Seu marido, o vigia Alexandre Silva, disse a repórteres: "Trataram ela como um bicho". O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, declarou: "Foi desumano desde o atendimento até a forma como ela foi colocada dentro da viatura".
Na terça-feira, 18, na sua conta oficial no Twitter, a presidente Dilma Rousseff enviou mensagem de solidariedade à família da vítima: "A morte de Cláudia chocou o país". De fato, o país não podia acreditar que a barbárie pudesse ter chegado a tamanha banalidade. Enquanto isso, o Comando da PM carioca emitia um comunicado no qual afirmava que "este tipo de conduta não condiz com um dos principais valores da corporação, que é a preservação da vida e dignidade humana".
E agora? Ficaremos todos com a imagem de Cláudia arrastada por aquele carro de porta-malas aberto, como um saco de ossos que escorregou e caiu, e que não mereceu sequer uma parada, apesar dos alertas. Dia desses, o mesmo país estava chocado com os tiros com que um PM, também no Rio de Janeiro, alvejou um carro que conduzia uma criança. Alguns anos antes – na verdade, há muitos anos, embora o julgamento dos responsáveis se arraste até hoje –, o antigo presidio do Carandiru foi cenário do massacre, pela PM de São Paulo, de 111 presos.
Domingo foi Cláudia, meses antes foi o menino alvejado, há anos foi a tragédia do Carandiru, a cada dia, a crônica da violência fica mais rica e mais inacreditável. A tragédia do descaso pela vida protagonizada por polícia e bandidos, com a população apavorada espremida no meio, é hoje o traço mais típico do país. A barbárie é mais brasileira do que o futebol, praticada tanto de farda quando de bermudão e boné virado. Mas, em vez de ações, medidas efetivas para mudar radicalmente, perceptivelmente, essa esbórnia de violência, as autoridades produzem comunicados, palavras amigas às famílias atingidas e palavras duras destinadas a morrer nos microfones.
A violência brasileira é tão pesada, tão antiga e tão incontornável que é uma desfaçatez que os governos não façam do tema uma urgência absoluta na sua pauta. Essa urgência não se limita apenas a equipar as polícias nem a organizar aparatos cada vez mais assustadores, mais parecidos com campos de batalha. A segurança pública é, como tudo mais, um aspecto da civilização. Não é uma guerra travada nas cidades, com a população colocada na posição de força a ser derrotada. Cláudia da Silva Ferreira não era uma soldada inimiga. Que treinamento receberam aqueles policiais militares que a colocaram no carro? – aqueles que o governador Sérgio Cabral chamou desumanos?
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é escritor.
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