sábado, 8 de março de 2014

O fantasma da hipocrisia

O «fantasma da hipocrisia» faz-nos esquecer como se acaricia um doente, uma criança ou um idoso. E não nos faz fitar os olhos da pessoa a quem damos apressadamente a esmola retraindo imediatamente a mão para não a sujar. O Papa dirigiu uma exortação a «nunca se envergonhar» da «carne do irmão» durante a missa celebrada na manhã de 7 de Março na capela da Casa de Santa Marta.

Na sexta-feira depois das cinzas a Igreja, explicou o Pontífice, propõe uma meditação sobre o significado verdadeiro do jejum, através de duas leituras incisivas, tiradas do livro do profeta Isaías (58, 1-9a) e do Evangelho de Mateus (9, 14-15). «Por detrás das leituras de hoje – afirmou o Pontífice – está o fantasma da hipocrisia, da formalidade de cumprir os mandamentos, neste caso o jejum». Portanto «Jesus volta ao tema da hipocrisia muitas vezes quando vê que os doutores da lei pensam que são perfeitos: cumprem tudo o que está nos mandamentos como se fosse uma formalidade».

E aqui, advertiu o Papa, há «um problema de memória» relativo a «este duplo aspecto do caminhar pela estrada da vida». De fato, os hipócritas «esqueceram que foram eleitos por Deus num povo, não individualmente. Esqueceram a história do seu povo, a história de salvação, eleição, aliança e promessa», que provém diretamente do Senhor.

E assim fazendo, continuou, «reduziram esta história a uma ética. A vida religiosa para eles era uma ética». Deste modo «explica-se que na época de Jesus, dizem os teólogos, havia mais ou menos trezentos mandamentos» para observar. Mas «receber do Senhor o amor de um pai, receber do Senhor a identidade de um povo e depois transformá-la numa ética» significa «rejeitar o dom de amor». De resto, frisou, os hipócritas «são pessoas boas, fazem tudo o que se deve fazer, parecem boas». Mas «são eticistas, sem bondade, porque perderam o sentido de pertença a um povo».

O sentido do verdadeiro «jejum é aquele que – afirmou o bispo de Roma – se preocupa pela vida do próximo, que não sente vergonha da carne do irmão, como diz Isaías. De fato, «a nossa perfeição, a nossa santidade vai em frente com o nosso povo, no qual fomos eleitos e inseridos». E «o nosso maior ato de santidade consiste precisamente na carne do irmão e na carne de Jesus Cristo».

«A salvação de Deus – afirmou o Pontífice – está num povo. Um povo que vai em frente, irmãos que não se envergonham uns dos outros». Mas exatamente por isso, advertiu, «é o jejum mais difícil: o jejum da bondade. A bondade leva-nos a isto». E «talvez – explicou citando o Evangelho – o sacerdote que passou perto daquele homem ferido tenha pensado», referindo-se aos mandamentos da época: «Mas se eu tocar aquele sangue, aquela carne ferida, ficarei impuro e não poderei celebrar ao sábado! E envergonhou-se da carne daquele homem. Esta é hipocrisia!». Ao contrário, observou o Santo Padre, «aquele pecador passou e viu-o: viu a carne do seu irmão, a carne de um homem do seu povo, filho de Deus como ele. E não se envergonhou».

«A proposta da Igreja hoje» sugere portanto um verdadeiro exame de consciência através de uma série de perguntas que o Papa fez aos presentes: «Sinto vergonha da carne do meu irmão, da minha irmã? Quando ofereço a esmola, deixo cair a moeda sem tocar a mão? E, se por acaso a tocar, faço-o apressadamente?» questionou imitando o gesto de quem limpa a mão. «Quando ofereço a esmola, fito o meu irmão, a minha irmã, nos olhos? Quando sei que uma pessoa está doente vou visitá-la? Saúdo-a com ternura?».

Para completar este exame de consciência, frisou o Papa, «existe um sinal que talvez vos ajude». Trata-se de «uma pergunta: sei acariciar doentes, idosos e crianças? Ou perdi o sentido da carícia?» Os hipócritas, continuou, não sabem acariciar, esqueceram como se faz. Então, eis a recomendação para «não se envergonhar da carne do nosso irmão: é a nossa carne». E «seremos julgados», concluiu o Pontífice, precisamente pelo nosso comportamento em relação «a este irmão e esta irmã» e certamente não «pelo jejum hipócrita».
SIR

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