Na nova edição da revista dos jesuítas La Civiltà Cattolica, foi publicada uma entrevista realizada pelo diretor do periódico, o padre jesuíta Antonio Spadaro, com Jorge Milia, que, nos anos 1960, no Colegio de la Inmaculada Concepción de Santa Fe, Argentina, foi aluno de Jorge Mario Bergoglio, então com 28 anos, jovem professor de literatura. Neste amplo trecho da entrevista que segue abaixo, as histórias de Bergoglio professor, o encontro com Borges e o amor do futuro papa pelas letras. A reportagem é de Antonio Spadaro.
Relendo a entrevista que o Papa Francisco concedeu à Civiltà Cattolica em setembro passado, vem à tona claramente a importância que Bergoglio atribui à criatividade. Durante a nossa conversa, eu ficara muito impressionado com as suas leituras, com a sua paixão pela música e pelo cinema. Eu tinha acompanhado as suas citações, dando-me conta de que, para ele, não existe um campo "estético" separado da sua vida cotidiana e do seu compromisso pastoral. Os protagonistas de um romance, por exemplo, para ele, fazem parte de uma vivência à qual ele faz referência de forma natural e espontânea, geralmente implícita.
Os anos felizes
Falando desses assuntos, o papa recordou uma experiência peculiar vivida por ele, quando, entre 1964 e 1965, aos 28 anos, foi professor de literatura em Santa Fe, no Colegio de la Inmaculada Concepción, uma escola jesuíta ativa há mais de 400 anos. Bergoglio ensinava aos dois últimos anos do Liceu e encaminhou os seus jovens à escrita criativa.
Assim, eu perguntei a Jorge Milia, nascido em Santa Fe em 1949, escritor, poeta e jornalista, aluno do então professor Bergoglio – o maestrillo, como se chamam os jesuítas em formação – para voltar com a memória àqueles "anos felizes", como ele os definiu.
Eis a entrevista.
Jorge, em suma, você e os seus colegas de escola, entre os 15 e os 17 anos, escreviam histórias, contos e poemas, lendo Borges e outros autores. Pode nos falar a respeito? Que papel teve o professor Jorge Mario Bergoglio nessa atividade?
Bergoglio gosta de lançar desafios. E nós éramos um grupo de adolescentes rebeldes, em plena tempestade hormonal, famintos e sedentos por novidades. O primeiro desafio que ele lançou foi o de nos confrontar com uma literatura espanhola que trazia todo o peso românico do espanhol antigo. O Mester de Juglaría e o Mester de Clerecía – isto é, os gêneros poéticos dos poetas populares e dos clérigos medievais espanhóis –, Gonzalo de Berceo e o Poema del mio Cid nos pareciam muito grandes e pesados do que aqueles moinhos de vento em que o fidalgo de La Mancha entrevia gigantes. Em suma: não tínhamos vontade de estudar. E Bergoglio nos abria o caminho para nos encorajar a percorrê-lo. Por exemplo, ele substituiu uma passagem do Mio Cid, que fala da entrada em Burgos, por Castilla, de Manuel Machado, uma poesia que comoveu a todos nós, a ponto de, 50 anos depois, muitos de nós ainda lembrarmo-nos dela por inteiro.
E a escrita criativa? Há um nexo com Borges?
Bergoglio nos impulsionou à escrita criativa. Eu fui um dos oito coautores dos Cuentos originales, um livro publicado no fim de um concurso literário voltado aos alunos do Colégio, promovido em 1965 por Bergoglio junto com Jorge Luis Borges, que assinou o prefácio. Naquele ano, tivemos a sorte de conhecer Borges, que estava à vontade, se divertindo. Não faltaram gafes e episódios hilariantes.
Mas fale-me de como era a relação cotidiana entre os alunos, o professor e a literatura. O que acontecia ao soar da sineta?
Era uma relação ativa de envolvimento, de paixão. Muitas vezes, era justamente Bergoglio que sentia uma sensação de admiração ao descobrir a imagem escondida em uma passagem do texto, em uma frase ou mesmo em uma palavra que um de nós lhe apresentava. Ele era capaz de transmitir essas experiências aos outros. Não estava comportava com os modos típicos de um mestre que dirige e dita passos a seguir, mas sim nos fazendo participar, obviamente dando conselhos e explicações. Se alguém expressava interesse em aprofundar um assunto ou uma obra, ele não só o permitia, mas também se oferecia para dar uma mão. Era evidente que ele estimava e apoiava quem se aventurasse em percursos pessoais de aprofundamento.
Quais eram os seus autores favoritos e aqueles que, ao contrário, ele não gostava?
Indubitavelmente e por muitas razões, naquela época, a leitura de Borges teve um papel primordial. No entanto, ele também gostava de Leopoldo Marechal e muitos outros autores argentinos. Além disso, também tenho certeza de que tinha intimidade com muita literatura italiana: não só os clássicos. A poesia sempre o atraiu muito, e a sua capacidade de ler em italiano e em alemão lhe oferecia um panorama interessante.
Bergoglio se dedicava exclusivamente ao ensino de literatura?
Não, a sua ação teve muito a ver com a reabertura da biblioteca do Colégio e com o mundo do teatro no Instituto. A representação de várias obras sempre foi uma atividade importante do "Inmaculada". Em 1964, ele planejava propor Tabaré para prestar homenagem a Juan Zorrilla de San Martín, um poeta uruguaio. Essa sua obra é um poema épico ambientado na dura guerra entre espanhóis e charruas em território uruguaio no fim do século XVI. Nesse contexto, desenvolve-se o idílio entre o índio Tabaré e a espanhola Blanca. Manuel De Mozos, um ator espanhol que desembarcou no Colégio, se esforçava para encenar essa obra, elogiada como uma joia da literatura uruguaia, mas tinha problemas com os papéis. Os alunos do Colégio eram todos homens, e a obra exigia a presença de personagens femininos. Como única solução possível, o espanhol propôs travestir de mulher dois ou três atores.
Jorge Bergoglio, que recém-havia assumido a responsabilidade da representação, lhe opôs uma clara recusa. Foi o primeiro a admitir mulheres nas produções da Academia de Teatro do Colégio. Até então, haviam sido escolhidas obras sem personagens femininos (a custo de alterá-las ou mutilá-las), ou, pior ainda, alguns personagens femininos eram representados por homens, colegas de curso. Bergoglio resolutamente pôs a questão nestes termos: isso prejudicava a imagem da mulher. Uma afirmação que me parece ter um reflexo hoje na sua posição sobre a importância da mulher na Igreja e na sociedade. Ele logo começou a pedir pelas mães e irmãs dos vários atores e em pouco tempo conseguiu encenar a obra com muito sucesso, com a necessária presença feminina.
E a música? Eu fiquei sabendo que Bergoglio também tinha se ocupado com a música dos seus jovens. Você tem alguma lembrança pessoal?
A nossa época era a época dos Beatles: John, Paul, George e Ringo. Todos nós, jovens dos anos 1960, queríamos ser os Beatles, mesmo que não soubéssemos tocar nem mesmo a sineta. Alguns, porém, sabiam... E, nesse caso, por que o "Inmaculada" não deveria se orgulhar dos imitadores dos cabeludos de Liverpool? Com toda a paixão dos anos 1960, Marcelo Delgado e Jorge Triay queriam criar um conjunto no modelo dos Beatles. Mas o que esses dois estudantes que aproveitavam a aula de ginástica para trocar ideias imaginavam, era difícil de realizar. Eles não tinham os instrumentos. Faltava uma bateria e, no lugar de guitarras e baixos elétricos, tinham violões crioulos, violões acústicos. Para fazer um grupo, faltavam membros. E faltavam até as letras das músicas. Era difícil fazer um quarteto com duas pessoas. Eles não tinham bem um lugar para ensaiar.
Em suma, faltava mais do que tinham, de modo que, como muitas vezes acontecia quando havia problemas para resolver, eles decidiram ir encontrar Jorge Mario Bergoglio, que os ouviu com interesse. Ele lhes garantiu apenas que, para obter o que queriam, eles teriam que trabalhar duro. Pouco tempo depois, somaram-se Ubaldo Pérez Paoli e José Cibils, e o quarteto foi composto. A ajuda do maestrillo se mostrou válida, e logo vieram os resultados: uma sala para os ensaios e um sistema de som, e a inclusão de um aluno interno, Martin Murphy, que se encarregaria das letras das músicas. O apoio de Bergoglio se tornou habitual. Era uma constante nele: nunca recusava um pedido de ajuda e, se visse que as pessoas se comprometiam e trabalhavam no projeto, ele as continuava apoiando. Para Bergoglio e para o Colégio, o apoio ao The Shouters ("Os gritadores") não se limitava a lhes fornecer o uso do espaço disponível, mas também mirava além, a apoiá-los em um projeto coletivo que, de alguma forma, teria repercussão nas suas vidas.
Corriere de la Sera, 28-02-2014
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