Só quando garis cruzam os braços, a cidade se dá conta do volume de lixo que gera todos os dias.
Por André Trigueiro*
É atávica e ancestral a rejeição que temos ao lixo e aos excrementos.
Uma herança do reino animal, onde o instinto de sobrevivência parece soar um alarme, toda vez que nos aproximamos de algo que ameaça nossa saúde e integridade.
É natural que seja assim.
Ainda que tantos seres humanos ainda vivam perigosamente em áreas saturadas de lixo e esgoto – não por opção, que fique claro – essa é uma aberração que afronta a civilização e deveria constranger os governantes.
A paralisação dos garis no Rio de Janeiro durante o carnaval expõe várias questões que extrapolam a tumultuada negociação por melhores salários de uma categoria historicamente mal remunerada e alvo de preconceitos em todo o país.
Pode-se dizer que o não recolhimento dos resíduos por alguns poucos dias na segunda maior cidade do Brasil inspira várias reflexões importantes e oportunas para todos nós
Será que apenas os garis têm a nobre função de zelar pela limpeza pública? De que maneira tanto lixo foi parar nas ruas? Qual a nossa responsabilidade nessa história?
A Política Nacional de Resíduos Sólidos, regulamentada em 2010 e com plena implementação prevista para este ano, estabelece que essa responsabilidade é compartilhada, ou seja, começa com a indústria que gera o produto (no caso do carnaval, boa parte dos resíduos encontrada nas ruas foi de material de propaganda, embalagens e latinhas dos patrocinadores do evento), alcança o varejista que comercializa o produto, o consumidor que faz uso do produto e a Prefeitura (a quem cabe institucionalmente a função de organizar as rotinas da coleta/transporte e destinação final do lixo). Em resumo: o gari é fundamental, mas não está sozinho nessa história.
Já reparou que greve de gari costuma durar menos do que as paralisações de médicos, professores e outras categorias profissionais? A razão é simples: ninguém suporta tanto lixo acumulado nas ruas. O nível de impaciência é proporcional ao desconforto causado pelos fortes odores, pelo volume de moscas, baratas e ratos, e materiais de diferentes tamanhos e consistências espalhados pelo vento ou pela chuva.
Infelizmente, é forçoso reconhecer que só quando os garis cruzam os braços a cidade se dá conta compulsoriamente do espetacular volume de lixo que gera todos os dias. Tangibiliza-se o que parecia invisível. Valoriza-se o que parecia desimportante. Enquanto o lixo é coletado e levado para longe, todos nos refugiamos nos efeitos inebriantes de uma cidade onde a montanha de resíduos (no caso do Rio de Janeiro são aproximadamente 10 mil toneladas de lixo por dia) não é uma questão relevante. Quando interrompe-se a coleta (pelo motivo que for) aquele alarme ancestral soa alto o suficiente para gerar imensa repulsa. Para uma cidade como o Rio de Janeiro onde tantos ainda jogam lixo displicentemente nas ruas, onde o desperdício de materiais é acintoso, onde a taxa de coleta seletiva é medíocre, onde o consumismo é voraz, a percepção do resultado de tudo isso é (ou deveria ser) pedagógica.
Agência Envolverde, 10-03-2014. Publicado originalmente no site Mundo Sustentável.
* André Trigueiro é jornalista com pós-graduação em Gestão Ambiental pela Coppe-UFRJ onde hoje leciona a disciplina geopolítica ambiental, professor e criador do curso de Jornalismo Ambiental da PUC-RJ, autor do livro Mundo Sustentável – Abrindo Espaço na Mídia para um Planeta em Transformação, coordenador editorial e um dos autores dos livros Meio Ambiente no Século XXI, e Espiritismo e Ecologia, lançado na Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro, pela Editora FEB, em 2009. É repórter da TV Globo e editor chefe do programa Cidades e Soluções, da Globo News. É também comentarista da Rádio CBN e colaborador voluntário da Rádio Rio de Janeiro.
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