A Lei nº 9.605/1998, em seu artigo 32, afirma que ‘praticar atos de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos’ é crime contra a fauna, com pena prevista de três meses a um ano de detenção, além de multa.
Por outro lado, a Lei 12.288/2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, garante a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado ‘o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias’. Neste contexto, o sacrifício de animais em cultos religiosos se apresenta de forma conflituosa: deve prevalecer a proteção à fauna ou o direito à liberdade de crença?
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“No caso de utilização sacrificial de um animal doméstico, entendo que haveria a prevalência do princípio de liberdade de culto e de crença, em detrimento da proteção da fauna. Agora, se o animal é ameaçado de extinção, por exemplo, a prática religiosa não se legitima. Mas há de se levar em conta o caso concreto, cada problemática requer uma avaliação”, explica Nicanor Henrique Netto Armando, da Escola Superior Dom Helder Câmara. A conclusão parece simples, mas vem fundamentada por dois anos de pesquisa sobre o tema, desenvolvida durante curso de mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável.
O resultado foi apresentado na manhã desta quarta-feira (12), perante banca formada pelos professores Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro e Kiwonghi Bizawu, da Dom Helder Câmara; e Filipeto Oliveira, da PUC Minas. De acordo com os examinadores, o mestrando desenvolveu um trabalho ‘de fôlego’, que se destaca pela qualidade e pela coerência. “A dissertação elaborada por Nicanor certamente engrandece o estudo sobre o Direito Penal e o Direito Penal Ambiental”, afirmou Filipeto Oliveira. “Fica claro que foi um trabalho desenvolvido com amor e empenho, digno de reconhecimento”, completou Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro.
Antes de iniciar a apresentação, Nicanor Henrique Netto Armando conversou com o portal Dom Total sobre o tema, confira:
Qual foi a proposta de sua dissertação?
O Direito ao Meio Ambiente tem uma característica muito marcante, que é o seu caráter conflituoso e restritivo com relação a outros direitos igualmente fundamentais. De um lado, temos a proteção da fauna e a vedação contra a crueldade, e por outro lado, temos o direito à liberdade de culto e o direito à cultura. Procurei, então, explorar e analisar o sacrifício de animais nos cultos religiosos de matriz africana. Fazer um contraponto entre esses direitos igualmente fundamentais.
Muito já foi escrito a respeito do contraponto entre o meio ambiente e a cultura, como a Farra do Boi, mas com o elemento ‘religião’ ainda é um tema pouco debatido, sobretudo sobre os cultos de matriz africana. A forma de expressão, os saberes, as cantigas, as danças, a musicalidade e a culinária associadas às manifestações desses cultos constituem patrimônio cultural imaterial. E isso é importante para a identificação deste segmento formador do processo civilizatório nacional.
Como o senhor analisa o tema e quais as principais conclusões da pesquisa?
Abordo o aspecto criminal, à luz do caso concreto, mas faço também uma abordagem à luz da técnica da ponderação. Utilizo um teórico, Robert Alexy, para a solução deste conflito principiológico. Não há uma relação de precedência condicionada entre princípios jurídicos ou hierarquia, há de se levar em conta o caso concreto, aquela problemática específica. Vai depender se é um animal silvestre ou ameaçado de extinção, se é um animal da fauna doméstica (que geralmente é utilizada nestes cultos). Então procuro explorar esses pontos no aspecto criminal e enfatizo o artigo 32, da Lei nº 9.605/1998, chegando a uma conclusão sobre sua constitucionalidade.
Cito ainda a teoria da tipicidade conglobante de Raúl Zaffaroni, porque no primeiro momento, podemos analisar o artigo 32 – que criminaliza atos de abusos e bons tratos com animais – e concluir que essas práticas a priori um juízo configurariam crime. Mas não podemos utilizar a norma do tipo legal e esquecer a norma que está aparada ao tipo. A norma tem que ser analisada conglobadamente.
Se o Estado fomenta as práticas, não pode proibi-las, então concluo fazendo esta ponderação: adequação, necessidade e proporcionalidade. No caso de utilização sacrificial de um animal doméstico, entendo que haveria a prevalência do princípio de liberdade de culto e de crença, em detrimento da proteção da fauna. Agora, se o animal é ameaçado de extinção, por exemplo, a prática religiosa não se legitima, porque no contraponto entre esses dois princípios, a não satisfação muito forte de um [princípio] não teria a mesma proporção da afetação do outro. Até porque iria aniquilar o animal e a própria prática se extinguiria. Esses princípios não têm uma correlação de precedência a priori, dependerá das possibilidades fáticas e jurídicas, então procurei discutir isso.
O senhor discute também a Lei Estadual 11915/2003, do Rio Grande do Sul. Qual a relevância desta legislação?
É uma Lei que traz ressalvas às vedações contra a crueldade, no caso da utilização de animais em cultos. Abordo, em minha pesquisa, a constitucionalidade formal e material desta Lei. Ela foi inclusive julgada em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que entendeu que ela é constitucional, que pode haver o sacrifício de animais nestes cultos. Até porque os praticantes não agem impelidos por crueldade, o que não alcançaria a vedação constitucional. Essa lei foi o grande paradigma que me motivou a enfrentar essa problemática.
Redação Dom Total
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