O país que sempre lidou com o problema do ponto de vista da vítima tem que lidar com ele em casa.
As bananas colocadas no carro do árbitro Márcio Chagas da Silva, em Bento Gonçalves (RS), e os gritos de "macaco" ouvidos pelo volante santista Arouca, em Mogi Mirim (SP), trouxeram à tona e colocaram em pauta um problema ainda "oculto" no futebol brasileiro.
Até a última semana, o racismo no esporte mais popular do país era considerado uma questão abominável, mas exclusivamente "estrangeira". Agora, virou assunto nas mesas de bar, nos escritórios e também nas arquibancadas.
O país sempre lidou com o problema do ponto de vista de "vítima", pelos casos de ofensas racistas em campos europeus ou sul-americanos. De repente, o fantasma apareceu no quintal de casa.
A discussão sobre o que é "válido" ou não dizer em um estádio de futebol ganhou contornos ainda mais intensos após o clássico entre Corinthians e São Paulo, no último domingo, pelo Campeonato Paulista. Cânticos e palavras de ordem de caráter homofóbico sempre fizeram parte da trilha sonora dos duelos entre os times.
Mas a agressividade no Pacaembu fez com que muitos, nas redes sociais, levantassem a questão: afinal, há tanta diferença assim entre os gritos racistas e outros de natureza distinta, mas ainda assim preconceituosos?
Repúdio
Antes do jogo, uma faixa foi exibida no gramado com a mensagem "O Futebol Paulista repudia o racismo". Em outros lugares do Brasil, o mesmo aconteceu.
A menos de 100 dias da Copa do Mundo, o chamado "país do futebol" parece parar para pensar no que nunca havia pensado. Os estádios estão sendo palco de manifestações que ultrapassam o nível de aceitação popular.
Além dos constantes problemas de violência, os públicos reduzidos e a ameaça de greve por partes dos jogadores, agora o futebol brasileiro ganha um "fantasma" com o qual não esperava ter de lidar.
Os dois casos de racismo que ocorreram em território nacional expuseram só agora algo que é mais frequente do que se imagina.
Jogadores, técnicos ou árbitros negros ouvem constantemente ofensas racistas dentro de campo ou na ida ao vestiário, mas, ao contrário do que aconteceu na semana passada, os casos dificilmente tornam-se públicos.
"É frequente. Aqui no Rio Grande do Sul acontece sistematicamente, principalmente na região da serra", contou o árbitro Márcio Chagas à BBC Brasil.
Questionado sobre o motivo que levaria os árbitros ou jogadores a não relatarem as ofensas racistas que recebem, ele explicou: "As pessoas já veem isso com conformismo, acham que vai ser sempre assim. Mas eu sempre relato na súmula, não deixo passar batido."
Medo
Outro fator que ainda "cala" as vítimas de racismo no futebol brasileiro é o medo de sofrerem alguma retaliação. "As pessoas ficam com receio de ter represália, de não ser escalado mais e aí não se pronunciam", disse o juiz gaúcho.
Para o cientista social Marcel Diego Tonini, pesquisador da USP que tem trabalhos de mestrado e doutorado sobre o tema "negros no futebol", o fato de os negros conviverem com "piadas" e brincadeiras racistas desde crianças acaba levando-os a "se acostumar" com o problema.
"Os negros são desencorajados a enfrentar casos de racismo. Esse não foi o primeiro que o Arouca, por exemplo, deve ter sofrido na vida dele", explicou. "Todos esses pequenos episódios que aconteceram na trajetória dos negros no Brasil, as brincadeiras, os pequenos insultos, levam a pessoa a falar: ´não vai dar nada, então vou me calar´", acrescentou Tonini.
Márcio Chagas ouviu gritos de "macaco", "seu lugar é no circo" e "volta pra selva" quando entrou e saiu do campo para apitar a partida entre Esportivo e Veranópolis, pela 12ª rodada do Campeonato Gaúcho, na última quarta-feira. Na hora de deixar o estádio, ele encontrou as portas do seu carro amassadas e bananas colocadas no capô.
O árbitro, então, relatou tudo o que aconteceu na súmula, e a procuradoria já denunciou o Esportivo, clube mandante da partida, pelos insultos racistas. O caso será julgado pelo Tribunal de Justiça Desportiva nesta semana.
Já o episódio com o volante Arouca aconteceu após a goleada do Santos por 5 a 1 sobre o Mogi Mirim, no estádio Romildão, quando alguns torcedores passaram por ele na saída do gramado e o chamaram de "macaco". O estádio foi interditado e o caso também será julgado no Tribunal. O volante soltou um comunicado oficial no dia seguinte, dizendo-se orgulhoso de sua origem e cor.
Punição
Para o presidente da Federação Gaúcha, Francisco Noveletto, enquanto não houver uma punição severa para as atitudes racistas no futebol, elas continuarão sendo frequentes nos estádios brasileiros.
"Não é a primeira vez que a gente fica sabendo de casos assim, mas não fizeram relato oficial. Ouço de terceiros ou até das pessoas que sofreram, mas elas falam ´nem dei bola, são dois ou três abobados´ e aí fica por isso mesmo", disse Noveletto à BBC Brasil.
"Teria de colocar uma punição específica no regulamento para dar mais força. Tem que tirar ponto, rebaixar, aí os caras vão pensar dez vezes antes de fazer uma coisa dessas. É só a CBF pôr no regulamento. Tem que vir de cima, presidente da Federação não pode fazer muita coisa", relatou.
Até agora, a CBF ainda não se manifestou oficialmente sobre os casos. Ao contrário do que fez em fevereiro, quando o meio-campista Tinga sofreu ofensas racistas jogando pelo Cruzeiro uma partida da Libertadores contra o Real Garcilaso, no Peru. Na ocasião, a entidade lançou rapidamente uma campanha pela rede social Instagram postando uma imagem do símbolo da seleção brasileira metade preto e a outra metade branca contendo a frase: "Brasil, somos iguais".
O país todo se revoltou diante do incidente no Peru. A torcida do Atlético Mineiro, arquirrival do Cruzeiro, chegou a cantar palavras de apoio a Tinga. Agora, com o problema escancarado no quintal de casa, parece haver um misto de desprezo e surpresa.
O ministro do Esporte, Aldo Rebelo, chegou a entrar em contato com as autoridades de São Paulo e do Rio Grande do Sul para pedir punições aos casos envolvendo Arouca e Márcio Chagas e repudiou as atitudes racistas dos torcedores. "A Justiça deve punir exemplarmente esse comportamento inaceitável. Não são torcedores, são criminosos", disse.
Para o cientista social Marcel Diego, os dois casos recentes seriam uma boa oportunidade para o Brasil dar o exemplo para o mundo na luta contra o racismo no futebol. Para ele, é o momento de o país acabar com o mito de ser uma "democracia racial" e tomar uma atitude efetiva para coibir as ofensas racistas nos estádios.
"A sociedade brasileira acha que isso é um problema estrangeiro, mas isso sempre aconteceu, no mínimo todo mês acontece. É um problema maior, social, mas, dentro da esfera esportiva, se o Brasil quiser se destacar do resto do mundo, tem que punir, não ficar só no discurso."
Homofobia
Se o racismo ainda é "velado" nos estádios brasileiros, outro tipo de preconceito - menos frequente na Europa - tem se tornado cada vez mais explícito nas arquibancadas: o da homofobia. É comum ouvir as torcidas "atacarem" jogadores de times adversários durante o jogo com os gritos de "veado" ou "bicha". E esse tipo de manifestação, ao contrário do que ocorre com o racismo, nem mesmo aparece nas discussões. É simplesmente considerado "normal".
Os gritos homofóbicos têm se tornado cada vez mais comuns nos estádios.
Para o cientista social e pesquisador da USP, Marcel Diego, há uma explicação para o fato de a homofobia ser "escancarada" nos estádios de futebol e o racismo ser "escondido".
"O racismo é menos aceitável do que a homofobia. Nenhum dos dois é aceitável, mas o racismo é menos aceitável, então a homofobia acontece de forma mais explícita. O futebol é um espaço extremamente masculinizado e não se permite nada fora disso ali", explicou.
"Mas era assim também com relação ao racismo no passado. Era extremamente comum ouvir gritos ofensivos. Aí quando os negros ´invadiram´ o espaço que era só de brancos no futebol, o racismo virou velado, escondido."
Até hoje, ainda não houve nenhuma denúncia feita por jogadores de futebol ou árbitros relatando insultos homofóbicos ouvidos na profissão.
Mas em outro esporte nacional já houve um caso de homofobia que acabou em punição. No vôlei, o Sada Cruzeiro teve de pagar uma multa de R$ 50 mil em 2011 pelas manifestações homofóbicas da sua torcida contra o central Michael, do Vôlei Futuro, em uma partida da Superliga (principal competição nacional) daquele ano.
BBC Brasil, 10-03-2014.
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