sábado, 15 de março de 2014

Sequestro é marco no sistema prisional

dom aluísio
O barulho seco do engatilhar de um revólver é o fio que me remete para o dia 15 de março de 1994. Todas as vezes em que escuto, não precisa ser exatamente igual, retorno para a manhã em que, pela primeira vez, dentro do Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), vi o então arcebispo de Fortaleza, dom Aloísio Lorscheider, no chão, dominado por um preso com uma faca na mão. Faz hoje exatos 20 anos.
Diário do NordesteDepois, soube não ser uma faca, mas um "cossoco" - arma artesanal produzida pelos presos - encostada no corpo daquele que era uma referência religiosa mundial. Era 10h30, e se estabelecia ali um marco. O sequestro de dom Aloísio, na época, com 70 anos, divide o antes e o depois da história do sistema prisional do Ceará. Ele e outras 12 pessoas foram feitos reféns, dando início a uma rebelião com mais de 20 horas de negociação, repercussão mundial, imagens e episódios tão fortes que permanecem no imaginário popular até agora.
A visita pastoral começou às 9h. Uma comissão de 20 pessoas, entre religiosos e defensores dos direitos humanos - além da imprensa - queria apurar denúncias de superlotação, maus-tratos e outras violações. Depois, todos no auditório, três presos subiram ao palco. Antônio Carlos Barbosa, o Carioca, imobilizou dom Aloísio. Os outros dois dominaram os então bispos auxiliares, dom Edmilson Cruz e dom Geraldo Barbosa, e o então vigário Episcopal de Fortaleza, hoje arcebispo da Paraíba, dom Aldo Pagotto.
Houve troca de tiros. Os detentos não amotinados foram para suas celas e quem não conseguiu sair do auditório foi instruído pelos policiais para deitar no chão. Assim fiz. Fiquei próximo ao soldado Demétrio Costa Araújo, que acabou baleado na perna. Rastejando, seguimos para um dos vão do palco do meu lado direito. Lá, já estava a maioria dos reféns que até então só se protegiam do tiroteio. Minutos depois, presos trouxeram os padres e o último entrou com dom Aloísio Lorscheider, fechando a porta atrás de si.
Carioca liderava os outros 14 detentos rebelados. Antes, na troca de tiros, morreu o preso Pedro Cosme Taveira e ficaram feridos dois policiais militares, dentre eles, o soldado Demétrio. Ficaram feridos também os presos Ivan Carlos Pereira da Silva e João Wilson Guedes Serafim, que morreu no IJF.
As negociações iniciaram pela manhã. A coordenadora da Pastoral Carcerária, na época, Eunísia Barroso, foi enviada pelos presos para tentar a abertura dos portões, mas não retornou. Depois, me mandaram sair para buscar armas junto aos policiais. Meu retorno também não foi permitido. As negociações só avançaram com a chegada de Ciro Gomes, na época, governador. Os presos saíram do IPPS às 23h15 e só liberaram os reféns às 6h. A Polícia recapturou todos os envolvidos no sequestro.
Memória
O médico Mário Mamede, na época, deputado estadual, era um dos reféns. Hoje, quando vê a imagem acima, retorna ao passado. Ia embora, quando a rebelião começou. Só foi liberado na manhã seguinte. Mamede sentiu a morte de perto várias vezes. Houve momentos assustadores. Entretanto, diz, a presença de dom Aloísio, que não aceitou qualquer possibilidade de deixar o grupo, deu segurança. O ex-arcebispo de Fortaleza, na verdade, não ficou apenas na posição de vítima. Foi uma das principais vozes de negociação.
Diante da possibilidade da morte dele, dom Aldo se ofereceu várias vezes para troca. A preocupação, além do óbvio, era a saúde frágil de dom Aloísio. Safenado, havia passado por duas cirurgias.
O atual arcebispo da Paraíba garante ter nascido de novo após o sequestro. Dele não gosta de lembrar. Não guarda recortes ou fotos. Mesmo assim, suas lembranças são bem fortes: mãos amarradas, de frente para a porta de entrada. Caso houvesse alguma invasão, seria atingido. "Não larguei um só momento o rosário que rezava, mesmo de mãos atadas".
Os dois e o atual coordenador regional da Pastoral Carcerária, Marco Passerini - que no dia foi para o IPPS para as negociações - possuem consensos. O primeiro é sobre a grandeza da pessoa de dom Aloísio. O segundo é que o sistema prisional está falido. Passerini defende mais sintonia entre os poderes para implementar ações e mudar o conceito punitivo de justiça.
De acordo com ele, a mudança já precisa começar nas delegacias. Se elas tivessem defensores públicos, eles poderiam distinguir a periculosidade do crime e se era afiançável. O que esvaziaria as casas de custódia. É necessário também a continuidade de políticas e projetos, hoje pontuais. "A cada gestão começa-se tudo do zero", lamenta.
Erilene Firmino
Chefe de reportagem

Entrevista 
Dom Aloísio Lorscheider
Cardeal

'O tratamento do preso é a pedra de toque para avaliar o futuro'
O Diário do Nordeste republica última entrevista do cardeal Lorscheider sobre o assunto, concedida em 2004. Ele morreu em 2007. Era bispo emérito de Aparecida. Em Fortaleza, ficou 22 anos
Hoje completa dez anos da rebelião quando houve o seu sequestro. Quando se fala no episódio qual a primeira imagem que lhe vem à cabeça?
É a do ambiente de surpresa. Não se poderia esperar que num encontro com os presidiários do IPPS - pedido por eles para exporem as suas dificuldades - pudesse ocorrer uma rebelião liderada por 14 deles. Vejo ainda a sala do auditório cheia de pessoas e como num instante o auditório se esvaziou.
O senhor teve medo?
No princípio tive certo medo, mas não durou muito. Dispus-me para morrer. Até esperava que eu passaria deste mundo para outro. Rezei o Ato de Contrição e a prece que rezamos todas as noites: "Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito".
O episódio trouxe-lhe alguma mudança pessoal?
Parece, à primeira vista, estranho, mas relembro o fato como muito positivo. Foi uma "aventura" que trouxe maior conhecimento da situação de nossos irmãos presidiários. Percebi que os presidiários não estavam ali perdidos, mas sim desgostosos por não terem tido um bom pai em sua vida.
Na ocasião, os presos reclamavam das condições sub-humanas do IPPS. Acredita que, nestes dez anos, houve mudança no tratamento dos presidiários?
Infelizmente, o IPPS tinha muito a desejar. Havia toda uma ala estragada, vertendo sujeira. Lamento que nestes dez anos as condições continuem mais ou menos as mesmas. A ideia, em vez de ser a recuperação e reinserção do preso na sociedade, é a de que ele é um "bicho", um "bruto", um "bandido", que não merece a mínima consideração. Ideia totalmente falsa! Os presos são irmãos nossos. E a própria Bíblia, no capítulo 25 de São Mateus e na Carta aos Hebreus, fala da necessidade de visitarmos os presos e nos interessarmos por eles.
Após o episódio, a sociedade passou a ter uma visão mais humanista dos presos?
Poderia ter tido este efeito positivo, mas não teve. Tudo continuou como dantes no país de Abrantes. O tratamento do preso nos presídios é a pedra de toque para avaliar o futuro melhor do Brasil.
Hoje, no Ceará, aposta-se na privatização de penitenciárias como uma das alternativas para o setor. É essa a solução?
Hoje, entrou nos costumes públicos uma filosofia de privatizar tudo. Não me parece o caminho. O Estado tem condições para melhorar a situação dos presídios. Um dos meios fortes seria o trabalho do presidiário. Nada faz mais mal ao ser humano do que a m ociosidade. O preso ocioso, sem perspectivas tem um só escopo: escapar da prisão, recuperar a liberdade.
Erilene Firmino
Chefe de reportagem
Diário do Nordeste

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