Parece que a direita, ao criar um novo passado, retoca também sua própria visão dos fatos.
Por David Paiva*
Parece que a direita, ao criar um novo passado, retoca também sua própria visão dos fatos, conforme as circunstâncias.
No início desta semana, com o cinquentenário do golpe de 1964, a mídia divulgou alguns depoimentos de espantosa ambição. Conhecidas estrelas da constelação da direita, dessas que vivem pontificando contra os “bandidos do PT” mas pouco ligam para os acontecimentos da campanha de Eduardo Azeredo em 1998, a pista de testes do mensalão, vieram anunciar um novo passado: “não, não houve ditadura como andam dizendo”.
Foi divulgado na internet o vídeo de um professor da faculdade de Direito da USP que, na sua aula de 31 de março, começou a ler solenemente um texto que chamava de “meu trabalho”. Com gesticulação enfática e abrupta, à maneira de Hitler, o ilustre professor, paramentado com vistosa gravata borboleta, afirmou que “a revolução de 64” tinha sido a “vitória da liberdade” no Brasil. Alunos revoltados, fora da sala, imitavam gritos e gemidos de torturados; por fim, invadiram o recinto e o bravo orador interrompeu a sua celebração da liberdade e se retirou.
Na véspera, o canal pago GloboNews, no programa apresentado por Edney Silvestre, exibiu depoimento do historiador Marco Antônio Villa, da Universidade Federal de São Carlos, um dos mais notórios intelectuais da neodireita. Com uma pincelada curta e ágil, o professor refez o desenho de 1964: “Quem diz que houve 21 anos de ditadura, deve voltar para a escola”. E explicou: “Onze estados realizaram eleições para governador em 1965. Todos os presidentes militares foram eleitos pelo Colégio Eleitoral; e permitiu-se até música pregando a luta armada, como foi o caso de ‘Caminhando’, de Geraldo Vandré.”
O professor ficou devendo aos telespectadores as seguintes informações: em 1965, diante do resultado adverso de algumas eleições estaduais, os partidos políticos foram extintos e a eleição presidencial, marcada para o ano seguinte, foi adiada (e depois cancelada). O Colégio Eleitoral que consagrava generais-presidentes só teve liberdade, desde o início, para referendar as escolhas dos comandantes militares, não de propor candidatos – e era composto apenas de parlamentares acuados, sobreviventes das cassações de mandatos. A Constituição foi substituída pelo Ato Institucional, instrumento “revolucionário” de autoria do jurista mineiro Francisco Campos, fascista de longa data, conhecido como “Chico Ciência” e autor da Constituição da ditadura do Estado Novo, de 1937.
Quanto à música de Geraldo Vandré, que o professor Villa disse pregar a luta armada, dois esclarecimentos: primeiro, se pregava luta armada era uma luta armada de flores (“e acreditam nas flores vencendo o canhão”); segundo, mesmo falando de flores, Vandré foi demitido do serviço público, sua canção proibida em todo o país (até hoje não recebe direitos autorais) e misteriosamente reduzido ao silêncio.
Marco Antônio Villa acredita que chamar de ditadura aqueles primeiros tempos pós-golpe é ignorância, caso de “voltar à escola”, mas há quem afirme o contrário: “A repressão policial logo mostrou a sua cara. Só no primeiro mês do novo regime, dez brasileiros foram mortos (...) Centenas de militantes políticos foram obrigados a entrar para a clandestinidade, outras centenas foram detidas – chegou-se a falar em 10 mil presos nos primeiros dias de abril – e humilhadas, como o dirigente comunista Gregório Bezerra, arrastado pelas ruas do Recife pelo coronel Darcy Villocq Viana (...) O arbítrio estava só começando.” Este texto eloquente está no livro “Jango”, de 2004, escrito pelo professor Marco Antônio Villa.
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é escritor.
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