O Filho de Deus ressuscitado não virou anjo, ele continua sendo homem.
Por Raymond Gravel*
Cada ano, no segundo domingo da Páscoa, nós temos esse belíssimo relato que só se encontra em João, passagem que marcava, originalmente, o fim do seu evangelho. Esta dupla aparição do Ressuscitado aos discípulos, primeiro na ausência de Tomé, e depois na sua presença, nos diz algo sobre a Igreja primitiva, mas também sobre a nossa Igreja hoje. Como em todos os relatos evangélicos, encontramos o testemunho de fé dos primeiros cristãos, e podemos identificar, ao mesmo tempo, mensagens para os cristãos do século XXI.
1. A Ressurreição... uma questão. Ao ler os relatos da Páscoa dos quatro evangelistas, podemos ter a impressão de que a Ressurreição é uma realidade tangível que não deixa margem para dúvidas, de tal modo sua manifestação parece clara: pensemos no tremor de terra evocado por Mateus e o anjo luminoso que vem do céu, enquanto que os soldados que guardam o túmulo tremeram de medo e ficaram como mortos (Mt 28,1-4). De modo especial, não devemos esquecer que esses relatos, escritos muito tempo depois da Páscoa, querem simplesmente expressar a fé na Ressurreição que vai gradativamente se desenvolvendo nas comunidades cristãs e que esses relatos carregam as marcas do autor que os compôs. Portanto, Mateus que era judeu, procura mostrar que o Cristo ressuscitado realiza plenamente os profetas da Antiga Aliança e que ele é o novo Moisés, o libertador do seu povo, da Igreja, o que explica os sinais resplandecentes das teofanias que encontramos nos textos do Antigo Testamento. Por outro lado, nos outros evangelhos, os sinais da Ressurreição são antes necessários e colocam mais perguntas para as quais não têm respostas: um túmulo vazio, em Lucas; o silêncio das mulheres em Marcos; um lençol dobrado no canto, em João; uma palavra no caminho, uma partilha do pão, etc. Assim, em todos os evangelhos, as testemunhas devem passar da angústia e da dúvida ao momento em que eles reconhecem que é o Cristo que está aí, que está vivo, que é verdadeiramente ressuscitado. Todos esses testemunhos da primeira hora descobrem aos poucos o caminho da fé. É o que emerge do evangelho de João de hoje.
2. A Ressurreição... uma presença na ausência. Jesus morreu. Ele não pode estar aí fisicamente como antes; ele só pode está aí como depois, isto é, através dos seus discípulos. De fato, os discípulos se sentem sozinhos, nos diz João. Eles estão num lugar fechado, com todas as portas trancadas, por causa do medo que sentem (Jo 20,19a). Mesmo assim, o Cristo está no meio deles (Jo 20,19b). Ele é, em primeiro lugar, Palavra: “A paz esteja com vocês!” (Jo 20,19c). Depois destas palavras, ele mostra a sua humanidade ferida (Jo 20,20c). Não esqueçamos que estamos no final do século I, no momento das piores perseguições aos cristãos: na comunidade de João, muitos cristãos martirizados se reúnem, no primeiro dia da semana, no domingo, para recordar o Ausente, isto é, através da Palavra partilhada e do testemunho da sua vida, eles descobrem a presença do Ressuscitado na ausência do Crucificado. Imediatamente, é a alegria experimentada por toda a comunidade reunida (Jo 20,20b).
3. A Ressurreição... uma vida nova. No encontro dominical, os primeiros cristãos tomam consciência de que a missão do Cristo lhes pertence: “Jesus disse novamente: a paz esteja com vocês! Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês” (Jo 20,21). É a nova criação; assim como no tempo da primeira criação, quando Deus sopra nas narinas de Adão para lhe dar a vida, Cristo faz o mesmo com os seus discípulos reunidos: “Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles, dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo’” (Jo 20,22).
4. A Ressurreição... uma libertação. Recriados, investidos pelo Espírito de Cristo, os discípulos tornam-se libertadores, capazes de reconciliar e de libertar as pessoas: “Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serão perdoados. Os pecados daqueles que vocês não perdoarem, não serão perdoados” (Jo 20,23). É uma responsabilidade que lhes é confiada, já que os discípulos têm o poder de libertar as pessoas ou de se recusar a fazê-lo, e esta responsabilidade não é reservada apenas aos apóstolos; de agora em diante, todos os discípulos podem e devem fazê-lo, o que significa que ainda hoje somos todos responsáveis pela reconciliação e pela liberdade. Cabe a nós reconciliar as pessoas e de torná-las livres.
5. A comunidade... uma necessidade. A fé cristã não pode ser vivida de maneira isolada; ela tem necessidade dos outros, da comunidade. É o significado da segunda parte do relato de João, onde Tomé, nosso gêmeo, não se encontra com os outros. Esses lhe contaram que o Cristo está vivo e que se faz presente no seu encontro do domingo, mas Tomé na pode crê-lo, porque ele não se encontrou com ele, pois estava ausente dessa reunião. É, pois, no âmago da celebração dominical seguinte que Tomé, desta vez presente, poderá fazer a experiência do Ressuscitado. E temos então a profissão de fé de Tomé em toda a sua solenidade: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28). Mas!!!
6. A fé... um testemunho. Mas!!! O evangelista João parece dizer que a fé deverá nascer primeiramente e antes de tudo da experiência dos outros que testemunham seu encontro com o Ressuscitado. O que significa que o nosso testemunho deve ser muito confiável e convincente para que os outros adiram à fé e para que tenham o gosto, também eles, de vir à reunião dominical para encontrar e reconhecer o Ressuscitado. É através das chagas dos participantes da reunião que reconhecemos o Crucificado ressuscitado. É uma missão e uma responsabilidade que é confiada hoje a todos os cristãos.
Concluindo, podemos dizer que a experiência de Tomé, que é também a nossa, tem um valor importante para a Igreja de hoje. A este respeito, gostaria de compartilhar os comentários do exegeta francês Jean Debruynne: "Deste ponto de vista, Tomé nos presta um grande serviço: as perguntas que ele faz em voz alta, são as mesmas que nós fazemos em voz baixa. Tomé nos tranquiliza, uma vez que ele, um incrédulo, chega à experiência da fé. Isso deveria nos livrar de muitas das nossas dúvidas. Não precisamos refazer a busca, Tomé já a fez! Mas este pedido de Tomé de querer colocar os dedos nas chagas das mãos e dos pés de Jesus e suas mãos na chaga do seu lado, não é apenas expressão do ceticismo; é também uma afirmação muito importante para a nossa fé: o Jesus ressuscitado ainda traz as marcas e as chagas da sua paixão. A ressurreição de Jesus não o fez retroagir ao passado, como se sua morte nunca tivesse acontecido. Pelo contrário, venceu a morte e ainda traz as marcas da crucificação. O Jesus ressuscitado não virou anjo; ele continua sendo homem. A ressurreição de Jesus muda o nosso olhar sobre o homem. As chagas de Jesus dizem que o ressuscitado carrega em si todas as chagas de todos os humilhados do mundo. Elas dizem também que nenhuma chaga, por mais injusta e humilhante que seja, pode nos impedir de nos tornarmos pessoas de cabeça erguida no coração do mundo. De agora em diante, nenhuma das nossas chagas pode nos impedir de ser livres: Jesus ressuscitado é, em primeiro lugar, aquele que carrega as chagas da nossa condição humana. De maneira clara, não esperemos nos livrar dos nossos males para vivermos de cabeça erguida. Jesus ressuscitou e é hoje que, mesmo com as nossas chagas, podemos nascer para a liberdade".
Réflexions de Raymond Gravel
*Raymond Gravel é padre da Diocese de Joliette, Canadá.
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