Ao participar da última turma da oficina Como Contar um Conto, do escritor colombiano, me inspirei para escrever um romance. Levei ainda oito anos para concluir 'A cabeça do santo'
SOCORRO ACIOLI, EM DEPOIMENTO A LUÍS ANTÔNIO GIRON
▪ San Antonio de Los Baños, dezembro de 2006 ▪
Das muitas utopias de juventude do escritor colombiano Gabriel García Márquez, a paixão pela ideia de um cinema latino-americano tão pleno de identidade quanto sua literatura talvez tenha sido a mais arrebatadora. Por um golpe da sorte, fiz parte dessa utopia quando fui aluna da última turma da oficina Como Contar um Conto, idealizada e ministrada por ele, dedicada à formação de roteiristas de cinema.
Há muito a aprender quando se convive, mesmo que por apenas seis dias, com um homem cuja história de vida é conduzida pela paixão.
O mundo conhece García Márquez como autor do romance Cem anos de solidão (1967) e de outras obras repletas da mistura eficaz entre o mágico e o amor. Seu legado como diretor e roteirista apaixonado por cinema é pouco conhecido. Deixou o curta-metragem A lagosta azul, de 1954, dirigido por ele, e alguns roteiros filmados, como A viúva de Montiel, em 1959, e Erendira, em 1983.
Em 1984, quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, García Márquez pôde realizar a maior obra de sua utopia: a Escuela de Cine y TV de San Antonio de Los Baños, emCuba. Construída num terreno imenso, hoje cercada por um perfumado pomar de laranjeiras, a escola alimentava o ideal de formar novos cineastas, oriundos de países latino-americanos, caribenhos e africanos.
Além da idealização e do alto investimento financeiro, García Márquez deixou a marca de seu pensamento na escola com a oficina Como Contar um Conto, comandada por ele uma vez por ano, de 1986 a 2006, com o objetivo de orientar pessoalmente um grupo seleto de jovens escritores imbuídos da bendita mania de contar.
Quando decidi tentar fazer parte dessa oficina, exatamente em 2006, não imaginava que aquele seria o último ano, minha última chance. Soube do curso por meio do livro Como contar um conto, que nada mais é que uma das oficinas transcritas, palavra por palavra, um dia por capítulo, e publicada em livro.
Foram meses de tentativas. O curso com García Márquez era para convidados, amigos dele, indicados por seus amigos. Nada disso estava a meu alcance. Jamais teria qualquer chance de fazer parte desse curso se, naquele ano, ele não tivesse apenas nove indicados para as dez cadeiras que a oficina comportava. Diante dessa vaga, o que eu precisava fazer para ter a honra de ocupá-la era mandar uma proposta de história para contar, em um parágrafo. A coordenadora responsável pela organização da oficina imprimiria o papel enviado por e-mail e colocaria nas mãos do mestre – que tomaria a decisão.
Eu precisava escolher a melhor história possível para conquistar o interesse de um prêmio Nobel de Literatura. E o que é a melhor história possível? Esta foi a primeira lição que aprendi com García Márquez: para que o tema arrebate o leitor, o autor precisa ser arrebatado primeiro. A melhor história que um autor pode escrever é a que mais o apaixona.
Diante de um caderno cheio de ideias que eu poderia propor para a oficina, a história da cabeça gigante do Santo Antônio abandonada no sertão do Ceará era a que mais me fascinava, assustava e me fazia pensar. Escolhi pela paixão, e funcionou. Ele me escolheu.
No dia 4 de dezembro de 2006, estava diante dele, em sua escola de cinema, ouvindo seus conselhos sobre a arte de criar mundos. Foram cinco dias de aula, das 9 da manhã às 2 da tarde.
A metodologia era simples: falávamos nossas histórias, e ele dizia o que achava de cada uma. Sem disfarces ou piedades. Impaciente com rodeios e com detalhes acrescidos a tramas sem consistência, ele me deu a segunda lição: um ficcionista deve conhecer e saber resumir sua história tanto quanto conhece o conto da Chapeuzinho Vermelho.
Quem cria, brinca de ser Deus e precisa praticar a consciência da onipresença em seu universo ficcional. Sem titubeios. “Qual é sua história?”, ele nos perguntava, todo o tempo. Se um de nós vacilava em responder, ele nos pedia que pensássemos na Chapeuzinho Vermelho mais uma vez.
E seguíamos assim, tentando. Ele nos interrompia constantemente, explorando as possibilidades narrativas, indagando sobre os personagens, nos levando ao limite. Talvez a maior qualidade de García Márquez como professor de escrita criativa seja a capacidade de identificar as falhas de cada proposta. Ele defende uma ideia que ainda é controversa entre escritores: o conhecimento prévio do eixo, do arco dramático completo da história.
Esta foi a terceira lição que aprendi com o mestre: só devemos sentar para escrever quando soubermos o que acontecerá com os personagens, até o fim.
Muitos autores descrevem as decisões sobre o processo criativo como algo que acontece enquanto se escreve. Jorge Amado dizia que foi Dona Flor que escolheu ficar com os dois maridos, segundo me contou sua filha, Paloma.
Para García Márquez, o método não funciona – e isso de método criativo é pessoal e intransferível. Adotei a ideia de procurar pelo eixo antes de escrever, custe o tempo que custar.
Seguimos por cinco dias ouvindo conselhos e opiniões sobre nossos projetos e sobre o ato de escrever. Encerramos a oficina no dia 8 de dezembro de 2006, exatamente 22 anos depois da noite em que García Márquez recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em Estocolmo. Nós, os alunos escolhidos, somos amigos até hoje. Formamos uma espécie de confraria, herdeiros de uma partilha única, última, a derradeira oficina do Gabo (apelido carinhoso de García Márquez).
Meus colegas vivem em países distintos. Uns escrevem novelas para a televisão, roteiros de cinema, de filmes publicitários. A maioria já ganhou prêmios em seus países. Temos a marca de García Márquez na vida. Isso não se apaga nunca.
Aquele parágrafo que enviei a Cuba, em 2006, transformou-se no romance A cabeça do santo(Companhia das Letras, 75 páginas, R$ 37), publicado em março no Brasil e a sair em outubro no Reino Unido, pela editora Hot Key Books, de Londres.
Com o livro em mãos, oito anos depois daquele dezembro que mudou tudo, suspeito que a pergunta repetitiva do mestre, “qual é sua história?”, tenha um sentido mais profundo do que parecia.
Talvez não seja apenas um instrumento de técnica narrativa ou um caminho para a clareza na construção ficcional. Essa pergunta, desde então, conduz minha vida. Qual é minha história? Eu me pergunto todos os dias, diante das decisões que preciso tomar. Ainda não tenho o eixo completo, felizmente. Pretendo demorar muito para chegar ao fim. Mas há uma marca, uma força, que segura o passo da escritora em formação que sou e sempre serei. Minha história é a de uma aluna de Gabriel García Márquez, herdeira de todas as suas utopias.
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