Há quem se pergunte, e com razão, se os papas deveriam ser convertidos em santos.
Por Juan Arias
Os santos comuns e anônimos que preferiram viver e morrer na sombra nunca chegaram à glória de Bernini em São Pedro.
No início do cristianismo, eram os fiéis os que canonizavam as pessoas que consideravam dignas de serem apresentadas à comunidade como exemplo a seguir, e costumavam ser gente comum. Só muito mais tarde foram os bispos, e depois os papas, quem passaram a ter o poder de declarar infalivelmente a santidade.
E desde então os papas canonizaram uns aos outros ou canonizaram fundamentalmente a pessoas que pertenceram a alguma ordem ou congregação religiosa. Chegar até a glória dos altares custa um efetivo dinheiro e influências são necessárias. Os santos anônimos, os que o foram apenas para os conhecidos próximos ou que preferiram viver e morar na sombra, esses nunca chegarão a ter seu retrato exposto na rica Basílica de São Pedro.
O papa Francisco fez bem ao querer canonizar, junto com o conservador polonês João Paulo II, outro papa, o italiano que as pessoas chamavam de papa bom, João XXIII, filho de camponeses que escreveu em seu testamento à família: “Não os deixo nada porque nunca tive nada”, o papa que teve a coragem de proclamar um Conselho de renovação da Igreja que o ainda vivo Bento XVI acabou combatendo – e condenando aos teólogos que o haviam feito possível.
Há quem se pergunte, e com razão, no entanto, se os papas deveriam ser canonizados. Em sua mesma essência de pastores pertence dar o exemplo de vida aos fiéis de todo o mundo.
Seria, digamos, uma obrigação inerente a sua função, ainda que seja certo que na grande história da Igreja houve papas que construíram, com suas vidas depravadas, um verdadeiro escândalo para os fiéis.
Se o mais importante ao proclamar alguém santo é o exemplo que sua vida supõe para os demais (dado que 98% da humanidade está composto de pessoas comuns, sem títulos e distinções) a maioria dos canonizados deveria pertencer a categoria das pessoas que vivem dentro da normalidade, mas dando um exemplo de integridade, altruísmo, de comunhão com os mais necessitados, dispostos sempre a perdoar e a acolher a miséria material e moral dos que o cercam.
Desses santos, aos que as pessoas comuns, como nos inícios do cristianismo, toma como exemplo, os admira e respeita, muito pouco ou quase nenhum chega às luzes da Basílica de São Pedro.
São os santos anónimos. São esse exército de mães e família que dão a vida não só por seus filhos naturais, mas sim que acabam sendo uma espécie de mãe de todos os que a rodeiam. Penso em muitas dessas mulheres criadoras de paz e de concórdia em meio a violência das favelas do mundo.
Mães que tendo ainda quente em seus braços o filho inocente morto pelos tiros de um bandido ou de um policial, são capazes de perdoar sem rancor, conscientes de que a violência não se vence com mais violência.
Penso em milhares de professoras de escola que dedicam sua vida a infância com um fervor que arranca admiração e que não o fazem por dinheiro, mas sim porque sua fé na humanidade as convenceu que trabalhar a mente e o coração de uma criança com amor é estar criando um mundo de paz e felicidade. Não são santas estas professoras?
E os pais de família, simples trabalhadores fora de sua pátria que tiram da boca uma cerveja ou uma guloseima para poder mandar no final do mês um dinheiro aos filhos que deixaram na pobreza de seu lugar de origem?
O mesmo podemos dizer de qualquer outra profissão realizada com honradez e espírito de altruísmo. Mais difícil seria hoje encontrar alguém digno de ser canonizado no mundo da política atravessada por corrupções e ânsias de poder, mas se alguém fosse encontrado mereceria ser duplamente canonizado.
E nem sempre é fácil encontrar santos no mundo dos religiosos, já que nem sempre os conventos ou as paróquias e templos são casas de santidade, como nos ensinam horríveis exemplos de pederastia ou de enriquecimento ao custo de tirar dos fiéis pobres um dinheiro que eles necessitam para dar de comer a seus filhos e que os homens da Igreja usam para o luxo e o conforto.
Também nesse mundo existem exemplos de santidade e desprendimento, mas, como no caso dos papas, eles deveriam ser os menos interessados para coloca-los como exemplo de vida ao resto da humanidade. Eles, por assim dizer, escolheram essa vida, que segundo os cânones da Igreja, os assegura a vida eterna. Levam o prêmio inerente a sua vocação.
Os que melhor serviriam como exemplo para os demais, no cotidiano de uma sociedade fácil de prostituir-se pelo poder ou o dinheiro, onde se sobem os escalões tantas vezes ao custo de pisar nos demais, são aquelas pessoas que, em meio a esses cenários de hipocrisia e ânsias de possuir, de violências para conseguir prosperar, sabem permanecer fiéis a sua consciência.
Os que sabem viver sem apropriar-se do que não os pertence; os que sabem respeitar aos demais como assim mesmo e os que, depois de dar eles esse exemplo de vida não prostituída, podem com a cabeça erguida pedir aos demais que sejam fiéis ao seu simples compromisso de serem filhos e irmãos de todos, já que ninguém nasce com estrelas na frente e todos devemos morrer deixando atrás medalhas e títulos – conquistados a maioria das vezes ao custo de trair a própria consciência.
Alguma vez, algum desses santos anônimos, com os que talvez cruzamos na rua, chegarão à glória de Bernini no Vaticano? Só, talvez, no dia que a Igreja volta a suas origens de simplicidade e santidade, e quando seu credo sejam as Bem-aventuranças, entre as que figura aquilo de “felizes os criadores da paz”, porque as guerras, as vinganças e os desejos de possuir ilicitamente são sempre multiplicadores da infelicidade.
E entre os santos canonizados pela Igreja, infelizmente, figuram até papas, reis e príncipes guerreiros.
El País, 27-04-2014
*Juan Arias é filósofo e escritor.
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