Rio de Janeiro (RV) - Sempre ouvimos o termo sacerdote e seria muito bom, aproveitando o Tríduo Pascal, refletirmos sobre isso em vista das celebrações da Quinta-feira Santa, com a Instituição do Sacerdócio Ministerial.
Nenhum de nós – que recebemos o sacramento da Ordem em seu segundo ou terceiro graus – tem um sacerdócio próprio, mas somos participantes do único sacerdócio de Cristo, Nosso Senhor (cf. Hb 5,10; 6,20), que é o mediador por excelência entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2,5). Ele santo, inocente e imaculado (cf. Hb 7,16), com sua única oferenda, levou à perfeição, de uma vez por todas, os que Ele santifica (Hb 10,14) pelo sacrifício de sua cruz.
Assim como o sacrifício de Cristo é único – o da cruz –, mas torna-se presente no sacrifício da Igreja pela Santa Missa, o único sacerdócio de Cristo torna-se também presente pelo sacerdócio ministerial sem em nada diminuir a unicidade do sacerdócio de Cristo. Daí, ensinar São Tomás de Aquino que “somente Cristo é o verdadeiro sacerdote; os outros são seus ministros” (Comentário aos Hebreus 7,4, citado pelo Catecismo da Igreja Católica n. 1545).
Se cada cristão batizado, por meio de seu sacerdócio comum ou batismal, tem a missão de exercitar a diaconia da caridade, muito mais nós, ministros ordenados, devemos exercer, de acordo com o nosso estado de vida, o amor fraterno para com os mais necessitados que se encontram à nossa volta e clamam por nossa ajuda, pois veem em nós, apesar de nossas misérias humanas, homens de Deus e distribuidores de Seu amor.
Aliás, o amor é a tônica ou o diferencial da vida cristã. Foi o próprio Senhor Jesus quem nos disse: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, pois “ninguém tem maior prova de amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,12-13). Esse amor imperava nas primeiras comunidades cristãs, de modo que não havia necessitados entre eles (At. 2,42-47) e, assim, eram um só coração e uma só alma (cf. At 4,32).
O Apóstolo João exalta tanto a prática do amor que afirma que Deus é amor (cf. 1 Jo 4,16) e aquele que diz amar a Deus a quem não vê, mas não ama seu irmão a quem vê é mentiroso (cf. 1Jo 4,20). São Paulo escreve o belo hino da caridade e diz que sem amor somos como o sino que não faz barulho (cf. 1Cor 13), ou seja, não servimos para nada.
Voltando-nos para os ministros ordenados, dentre os quais eu me incluo, devemos pensar nas palavras do Senhor, em outro contexto, a dizer que a quem mais é dado, mais será pedido (cf. Lc 12,48). Quer dizer: se dos que receberam o sacerdócio comum dos fiéis pelo Batismo serão pedidas contas, quais não serão as cobranças exigidas daqueles que receberam, além do Santo Batismo, a ordenação presbiteral a fim de sermos as mãos estendidas de Cristo ao mundo?
Contudo, o que nos motiva a praticarmos o amor-ágape não é o medo da cobrança divina, mas, sim, a responsabilidade da função que assumimos, de servir a Deus por meio dos irmãos, a começar pelos que mais necessitam. Aliás, Jesus deixa claro que não são os que se acham de saúde que carecem de médicos, mas, sim, os doentes (cf. Mc 2,17).
O Papa Bento XVI recordava, em sua Catequese de 29 de abril de 2010, a vida de São Leonardo Murialdo, enquanto sacerdote exemplar do século XIX, dizendo que ele viveu “ressaltando a grandeza da missão do presbítero, que deve ‘continuar a obra da redenção, a grande obra de Jesus Cristo, a obra do Salvador do mundo’, ou seja, de ‘salvar as almas’, São Leonardo recordava sempre a si mesmo e aos irmãos de hábito a responsabilidade de uma vida coerente com o sacramento recebido. Amor de Deus e amor a Deus: foi esta a força do seu caminho de santidade, a lei do seu sacerdócio, o significado mais profundo do seu apostolado entre os jovens pobres e a fonte da sua oração. São Leonardo Murialdo abandonou-se com confiança à Providência, cumprindo generosamente a vontade divina, no contato com Deus e dedicando-se aos jovens pobres. Deste modo, ele uniu o silêncio contemplativo com o ardor incansável da ação, a fidelidade aos deveres de cada dia com a genialidade das iniciativas, a força nas dificuldades com a tranquilidade do espírito. Este é o seu caminho de santidade para viver o mandamento do amor a Deus e ao próximo”.
Outro exemplo de caridade sacerdotal, citado por Bento XVI na mesma Catequese, é a de São José de Cottolengo, também santo do século XIX. Este homem de Deus teve sua inspiração para se dedicar mais intensamente à caridade na manhã de domingo, 2 de setembro de 1827, ao encontrar-se, em Turim, com uma família francesa cuja esposa, com cinco filhos, estava em estado de gravidez avançada e com febre alta.
“Depois de ter passado por vários hospitais – diz Bento XVI –, a família encontrou alojamento num dormitório público, mas a situação para a mulher foi-se agravando e algumas pessoas puseram-se em busca de um sacerdote. Por um misterioso desígnio, cruzaram-se com Cottolengo e foi precisamente ele, com o coração amargurado e oprimido, que acompanhou essa jovem mãe até à morte, entre a angústia de toda a família.”
“Depois de ter cumprido este doloroso dever, com o sofrimento no coração, foi diante do Santíssimo Sacramento e rezou: ‘Meu Deus, por quê? Por que quiseste que eu fosse uma testemunha? O que queres de mim? É necessário fazer algo!’ Levantou-se, mandou badalar todos os sinos, acendeu as velas e, recebendo os curiosos na igreja, disse: ‘A graça foi concedida! A graça foi concedida!’ A partir daquele momento, Cottolengo foi transformado: todas as suas capacidades, especialmente a sua habilidade econômica e organizativa, foram utilizadas para dar vida a iniciativas em defesa dos mais necessitados.”
“Ele soube – continua o Papa – empenhar no seu empreendimento dezenas e dezenas de colaboradores e voluntários. Transferindo-se para a periferia de Turim, a fim de ampliar a sua obra, criou uma espécie de povoado, no qual, a cada edifício que conseguiu construir, atribuiu um nome significativo: ‘casa da fé’, ‘casa da esperança’, ‘casa da caridade’. Pôs em ato o estilo das ‘famílias’, constituindo verdadeiras comunidades de pessoas, voluntários e voluntárias, homens e mulheres, religiosos e leigos, unidos para enfrentar e superar em conjunto as dificuldades que se apresentavam.”
“Cada um, naquela Pequena Casa da Providência Divina, tinha uma tarefa específica: alguns trabalhavam, outros rezavam, uns serviam, alguns educavam e outros ainda administravam. Pessoas sadias e doentes compartilhavam todas o mesmo peso da vida cotidiana. Também a vida religiosa se definiu no tempo, segundo as necessidades e as exigências particulares. Pensou também num seminário próprio, para uma formação específica dos sacerdotes da Obra. Estava sempre pronto a seguir e a servir a Providência Divina, nunca a interrogá-la. Dizia: ‘Sou inútil e nem sei o que faço. Porém, a Providência Divina certamente sabe o que quer. Quando a mim, cabe-me apenas secundá-la. Para a frente, in Domino [no Senhor]’. Para os seus pobres e mais necessitados, definir-se-á sempre ‘o operário da Providência Divina’.”
“Ao lado das pequenas cidadelas, quis fundar também cinco mosteiros de irmãs contemplativas e um de eremitas, e ali considerou entre as realizações mais importantes: uma espécie de ‘coração’ que devia pulsar por toda a Obra.”
Vê-se que ambos os santos sacerdotes caridosos tudo fizeram pelos mais necessitados, sem, contudo, descuidarem, por mínimo que fosse, da vida espiritual alicerçada na oração. Esta é o centro, o cume da caridade, pois por ela falamos com Deus e nos preparamos para, nas pregações, falar de Deus e, na caridade, agir como Cristo, Deus feito homem por amor de nós, agiria se ali estivesse.
Se olharmos para este nosso imenso Brasil, relembrando as nossas paróquias ou as cidades pelas quais já passamos, também encontraremos exemplos caritativos de velhos párocos que foram, a justo título, chamados de “pai dos pobres”, tão grande era o seu cuidado para com todos os que os procuravam. Ninguém saía do mesmo modo que chegou.
Engana-se, no entanto, quem imagina que a caridade é só material. Temos as clássicas obras de misericórdia, sendo que sete delas são materiais (dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir os nus etc.) e sete são espirituais (aconselhar os errantes, corrigir os que erram, consolar os aflitos etc.), de modo que, mesmo sem recursos financeiros, é possível praticar o amor para com o próximo que bate à nossa porta.
Eis um exemplo não muito distante de nós: um jovem entregue ao vício do álcool, em um momento de sobriedade pediu ajuda por e-mail a Dom Estevão Bettencourt, beneditino do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro e que muito fez por esta Arquidiocese, e para o qual celebramos missa no sexto aniversário de seu falecimento na semana passada. O monge lhe respondeu aconselhando-o, caridosamente, a deixar a bebida buscando auxílio de seus pais, voltando a estudar (atividade que ele deixara), procurando apoio em um grupo de AA (Alcoólicos Anônimos) e tentando reencontrar o sentido da vida em Deus e nos valores da fé por meio do apoio de um sacerdote.
Ciente das dificuldades em que o rapaz se encontrava, Dom Estevão lhe falava em certo trecho da mensagem: “Dirá você: e como hei de me aproximar de Deus? Como O acharei, a Ele que é invisível? – Respondo: procure um sacerdote ou um amigo firme na fé, alguém que tenha experiência do convívio com Deus e que lhe possa falar do Eterno com conhecimento de causa. A função do padre é servir aos irmãos e fazer tudo para ajudá-los. Se não encontrar alguém nas suas cercanias, disponha do irmão que lhe escreve (...). Use e abuse de quem o passa a ajudar” (Pergunte e Responderemos n. 448, setembro de 1999, p. 430).
Eis um belo exemplo da caridade sacerdotal que leva ao desprendimento de si para consumir-se, qual chama de uma vela, pelos irmãos que mais carecem de nosso auxílio certo, nas horas incertas de suas vidas a fim de poderem sair de suas “periferias existenciais”, como gosta de lembrar o Papa Francisco, e vir para o centro da vida, da família, da comunidade... de onde nunca deveriam ter se afastado.
Como não lembrarmos aqui daquela canção religiosa que diz “Quem vive para si empobrece o seu viver, quem doar a própria vida, vida nova há de colher”. Sim, pois o Pai do céu ama quem oferta sem reservas e com alegria (cf. 2Cor 9,7). Este deve ser o caso do sacerdote para quem, a partir do momento de sua entrega vocacional, cujo ápice é a ordenação, nada mais lhe pertence, mas tudo o que Deus lhe deu deve ser colocado a serviço do irmão.
Sem vivermos essa realidade desafiadora, mas, ao mesmo tempo nobre, da nossa missão, corremos o risco de ser como o sino que soa em vão, de nos tornarmos meros “funcionários do sagrado, sem fé e nem amor”. Não foi para isso que Cristo chamou e escolheu a nós, seus ministros, mas, sim, para sermos arautos da caridade, uma vez que Ele mesmo deu-nos o exemplo maior, entregando Sua vida por nós quando ainda éramos pecadores (cf. Rm 5,6).
Cientes de tudo isso, peçamos confiantes: Senhor Jesus, dai-nos a graça de viver santamente o meu ministério sacerdotal servindo na caridade os meus irmãos e irmãs, especialmente aqueles que mais necessitam de minha presença junto deles a fim de levar-Vos comigo. Amém!
Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
Rádio Vaticano
Nenhum de nós – que recebemos o sacramento da Ordem em seu segundo ou terceiro graus – tem um sacerdócio próprio, mas somos participantes do único sacerdócio de Cristo, Nosso Senhor (cf. Hb 5,10; 6,20), que é o mediador por excelência entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2,5). Ele santo, inocente e imaculado (cf. Hb 7,16), com sua única oferenda, levou à perfeição, de uma vez por todas, os que Ele santifica (Hb 10,14) pelo sacrifício de sua cruz.
Assim como o sacrifício de Cristo é único – o da cruz –, mas torna-se presente no sacrifício da Igreja pela Santa Missa, o único sacerdócio de Cristo torna-se também presente pelo sacerdócio ministerial sem em nada diminuir a unicidade do sacerdócio de Cristo. Daí, ensinar São Tomás de Aquino que “somente Cristo é o verdadeiro sacerdote; os outros são seus ministros” (Comentário aos Hebreus 7,4, citado pelo Catecismo da Igreja Católica n. 1545).
Se cada cristão batizado, por meio de seu sacerdócio comum ou batismal, tem a missão de exercitar a diaconia da caridade, muito mais nós, ministros ordenados, devemos exercer, de acordo com o nosso estado de vida, o amor fraterno para com os mais necessitados que se encontram à nossa volta e clamam por nossa ajuda, pois veem em nós, apesar de nossas misérias humanas, homens de Deus e distribuidores de Seu amor.
Aliás, o amor é a tônica ou o diferencial da vida cristã. Foi o próprio Senhor Jesus quem nos disse: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, pois “ninguém tem maior prova de amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,12-13). Esse amor imperava nas primeiras comunidades cristãs, de modo que não havia necessitados entre eles (At. 2,42-47) e, assim, eram um só coração e uma só alma (cf. At 4,32).
O Apóstolo João exalta tanto a prática do amor que afirma que Deus é amor (cf. 1 Jo 4,16) e aquele que diz amar a Deus a quem não vê, mas não ama seu irmão a quem vê é mentiroso (cf. 1Jo 4,20). São Paulo escreve o belo hino da caridade e diz que sem amor somos como o sino que não faz barulho (cf. 1Cor 13), ou seja, não servimos para nada.
Voltando-nos para os ministros ordenados, dentre os quais eu me incluo, devemos pensar nas palavras do Senhor, em outro contexto, a dizer que a quem mais é dado, mais será pedido (cf. Lc 12,48). Quer dizer: se dos que receberam o sacerdócio comum dos fiéis pelo Batismo serão pedidas contas, quais não serão as cobranças exigidas daqueles que receberam, além do Santo Batismo, a ordenação presbiteral a fim de sermos as mãos estendidas de Cristo ao mundo?
Contudo, o que nos motiva a praticarmos o amor-ágape não é o medo da cobrança divina, mas, sim, a responsabilidade da função que assumimos, de servir a Deus por meio dos irmãos, a começar pelos que mais necessitam. Aliás, Jesus deixa claro que não são os que se acham de saúde que carecem de médicos, mas, sim, os doentes (cf. Mc 2,17).
O Papa Bento XVI recordava, em sua Catequese de 29 de abril de 2010, a vida de São Leonardo Murialdo, enquanto sacerdote exemplar do século XIX, dizendo que ele viveu “ressaltando a grandeza da missão do presbítero, que deve ‘continuar a obra da redenção, a grande obra de Jesus Cristo, a obra do Salvador do mundo’, ou seja, de ‘salvar as almas’, São Leonardo recordava sempre a si mesmo e aos irmãos de hábito a responsabilidade de uma vida coerente com o sacramento recebido. Amor de Deus e amor a Deus: foi esta a força do seu caminho de santidade, a lei do seu sacerdócio, o significado mais profundo do seu apostolado entre os jovens pobres e a fonte da sua oração. São Leonardo Murialdo abandonou-se com confiança à Providência, cumprindo generosamente a vontade divina, no contato com Deus e dedicando-se aos jovens pobres. Deste modo, ele uniu o silêncio contemplativo com o ardor incansável da ação, a fidelidade aos deveres de cada dia com a genialidade das iniciativas, a força nas dificuldades com a tranquilidade do espírito. Este é o seu caminho de santidade para viver o mandamento do amor a Deus e ao próximo”.
Outro exemplo de caridade sacerdotal, citado por Bento XVI na mesma Catequese, é a de São José de Cottolengo, também santo do século XIX. Este homem de Deus teve sua inspiração para se dedicar mais intensamente à caridade na manhã de domingo, 2 de setembro de 1827, ao encontrar-se, em Turim, com uma família francesa cuja esposa, com cinco filhos, estava em estado de gravidez avançada e com febre alta.
“Depois de ter passado por vários hospitais – diz Bento XVI –, a família encontrou alojamento num dormitório público, mas a situação para a mulher foi-se agravando e algumas pessoas puseram-se em busca de um sacerdote. Por um misterioso desígnio, cruzaram-se com Cottolengo e foi precisamente ele, com o coração amargurado e oprimido, que acompanhou essa jovem mãe até à morte, entre a angústia de toda a família.”
“Depois de ter cumprido este doloroso dever, com o sofrimento no coração, foi diante do Santíssimo Sacramento e rezou: ‘Meu Deus, por quê? Por que quiseste que eu fosse uma testemunha? O que queres de mim? É necessário fazer algo!’ Levantou-se, mandou badalar todos os sinos, acendeu as velas e, recebendo os curiosos na igreja, disse: ‘A graça foi concedida! A graça foi concedida!’ A partir daquele momento, Cottolengo foi transformado: todas as suas capacidades, especialmente a sua habilidade econômica e organizativa, foram utilizadas para dar vida a iniciativas em defesa dos mais necessitados.”
“Ele soube – continua o Papa – empenhar no seu empreendimento dezenas e dezenas de colaboradores e voluntários. Transferindo-se para a periferia de Turim, a fim de ampliar a sua obra, criou uma espécie de povoado, no qual, a cada edifício que conseguiu construir, atribuiu um nome significativo: ‘casa da fé’, ‘casa da esperança’, ‘casa da caridade’. Pôs em ato o estilo das ‘famílias’, constituindo verdadeiras comunidades de pessoas, voluntários e voluntárias, homens e mulheres, religiosos e leigos, unidos para enfrentar e superar em conjunto as dificuldades que se apresentavam.”
“Cada um, naquela Pequena Casa da Providência Divina, tinha uma tarefa específica: alguns trabalhavam, outros rezavam, uns serviam, alguns educavam e outros ainda administravam. Pessoas sadias e doentes compartilhavam todas o mesmo peso da vida cotidiana. Também a vida religiosa se definiu no tempo, segundo as necessidades e as exigências particulares. Pensou também num seminário próprio, para uma formação específica dos sacerdotes da Obra. Estava sempre pronto a seguir e a servir a Providência Divina, nunca a interrogá-la. Dizia: ‘Sou inútil e nem sei o que faço. Porém, a Providência Divina certamente sabe o que quer. Quando a mim, cabe-me apenas secundá-la. Para a frente, in Domino [no Senhor]’. Para os seus pobres e mais necessitados, definir-se-á sempre ‘o operário da Providência Divina’.”
“Ao lado das pequenas cidadelas, quis fundar também cinco mosteiros de irmãs contemplativas e um de eremitas, e ali considerou entre as realizações mais importantes: uma espécie de ‘coração’ que devia pulsar por toda a Obra.”
Vê-se que ambos os santos sacerdotes caridosos tudo fizeram pelos mais necessitados, sem, contudo, descuidarem, por mínimo que fosse, da vida espiritual alicerçada na oração. Esta é o centro, o cume da caridade, pois por ela falamos com Deus e nos preparamos para, nas pregações, falar de Deus e, na caridade, agir como Cristo, Deus feito homem por amor de nós, agiria se ali estivesse.
Se olharmos para este nosso imenso Brasil, relembrando as nossas paróquias ou as cidades pelas quais já passamos, também encontraremos exemplos caritativos de velhos párocos que foram, a justo título, chamados de “pai dos pobres”, tão grande era o seu cuidado para com todos os que os procuravam. Ninguém saía do mesmo modo que chegou.
Engana-se, no entanto, quem imagina que a caridade é só material. Temos as clássicas obras de misericórdia, sendo que sete delas são materiais (dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir os nus etc.) e sete são espirituais (aconselhar os errantes, corrigir os que erram, consolar os aflitos etc.), de modo que, mesmo sem recursos financeiros, é possível praticar o amor para com o próximo que bate à nossa porta.
Eis um exemplo não muito distante de nós: um jovem entregue ao vício do álcool, em um momento de sobriedade pediu ajuda por e-mail a Dom Estevão Bettencourt, beneditino do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro e que muito fez por esta Arquidiocese, e para o qual celebramos missa no sexto aniversário de seu falecimento na semana passada. O monge lhe respondeu aconselhando-o, caridosamente, a deixar a bebida buscando auxílio de seus pais, voltando a estudar (atividade que ele deixara), procurando apoio em um grupo de AA (Alcoólicos Anônimos) e tentando reencontrar o sentido da vida em Deus e nos valores da fé por meio do apoio de um sacerdote.
Ciente das dificuldades em que o rapaz se encontrava, Dom Estevão lhe falava em certo trecho da mensagem: “Dirá você: e como hei de me aproximar de Deus? Como O acharei, a Ele que é invisível? – Respondo: procure um sacerdote ou um amigo firme na fé, alguém que tenha experiência do convívio com Deus e que lhe possa falar do Eterno com conhecimento de causa. A função do padre é servir aos irmãos e fazer tudo para ajudá-los. Se não encontrar alguém nas suas cercanias, disponha do irmão que lhe escreve (...). Use e abuse de quem o passa a ajudar” (Pergunte e Responderemos n. 448, setembro de 1999, p. 430).
Eis um belo exemplo da caridade sacerdotal que leva ao desprendimento de si para consumir-se, qual chama de uma vela, pelos irmãos que mais carecem de nosso auxílio certo, nas horas incertas de suas vidas a fim de poderem sair de suas “periferias existenciais”, como gosta de lembrar o Papa Francisco, e vir para o centro da vida, da família, da comunidade... de onde nunca deveriam ter se afastado.
Como não lembrarmos aqui daquela canção religiosa que diz “Quem vive para si empobrece o seu viver, quem doar a própria vida, vida nova há de colher”. Sim, pois o Pai do céu ama quem oferta sem reservas e com alegria (cf. 2Cor 9,7). Este deve ser o caso do sacerdote para quem, a partir do momento de sua entrega vocacional, cujo ápice é a ordenação, nada mais lhe pertence, mas tudo o que Deus lhe deu deve ser colocado a serviço do irmão.
Sem vivermos essa realidade desafiadora, mas, ao mesmo tempo nobre, da nossa missão, corremos o risco de ser como o sino que soa em vão, de nos tornarmos meros “funcionários do sagrado, sem fé e nem amor”. Não foi para isso que Cristo chamou e escolheu a nós, seus ministros, mas, sim, para sermos arautos da caridade, uma vez que Ele mesmo deu-nos o exemplo maior, entregando Sua vida por nós quando ainda éramos pecadores (cf. Rm 5,6).
Cientes de tudo isso, peçamos confiantes: Senhor Jesus, dai-nos a graça de viver santamente o meu ministério sacerdotal servindo na caridade os meus irmãos e irmãs, especialmente aqueles que mais necessitam de minha presença junto deles a fim de levar-Vos comigo. Amém!
Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
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