Por Andrea Gagliarducci
O destaque do comunicado de imprensa circunscrito ao encontro entre o papa Francisco e o presidente dos EUA Barack Obama é que os dois líderes firmam o compromisso mútuo em acabar com a praga do tráfico humano. O tráfico humano parece ser o desafio diplomático mais importante do papa Francisco. Sim, houve iniciativas e pedidos pela paz no mundo, culminando, em 7 de setembro passado, no dia de Jejum e Oração para evitar a intervenção militar americana na Síria. E houve apelos contínuos do papa Francisco para um diálogo, em nome de uma “cultura do encontro”, frase que o papa gosta muitas vezes de inserir nos comunicados oficiais de imprensa. Muitas vezes, mas não sempre. A “cultura do encontro” não é mencionada no comunicado divulgado ao final da visita do presidente Obama.
Esta visita, na forma como ela foi gerida, pode nos ajudar a descobrir o caminho que a diplomacia da Santa Sé vem tomando neste papado. Os Estados Unidos tem um peso considerável dentro dos muros do Vaticano. Os maiores doadores do Óbulo de São Pedro são americanos. Alguns dos filantropos mais generosos do museu do Vaticano são dos EUA. Em princípio, as doações das grandes organizações católicas americanas são usadas para cobrir parte dos (altíssimos) custos vaticanos com seus assessores e consultores externos.
Ao mesmo tempo os bispos dos EUA provaram, ao longo dos anos, estarem entre os mais organizados no mundo. As lutas por liberdade religiosa, contra o aborto, em proteção à objeção de consciência e ao casamento tradicional têm sido exemplos de como os bispos americanos estão entre os poucos bispos que ainda podem ter um impacto na opinião pública de seus países.
Em geral, os bispos americanos são retratados como tradicionais e defensores de posições neoconservadoras, na defesa contra o abordo, por exemplo, em detrimento de questões sociais. Isso é parcialmente verdadeiro, e é um resultado da polarização do discurso público neste país. Não há um grande partido político assumindo posições “de centro”, então os temas são sempre considerados a partir da perspectiva política de esquerda ou direita. Somente alguns se lembram dos documentos da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, da década de 1980, que criticavam o governo Reagan e pediam pelo fim da proliferação nuclear (este último, seguido por muitas outras instâncias sobre o mesmo assunto). E poucos se lembram de que, em anos mais recentes, os bispos americanos defenderam, com toda força, a reforma da lei de imigração.
A ênfase do papa Francisco nas questões sociais tem sido confundida como estando em oposição às posturas dos bispos americanos. Francisco atraiu a simpatia da “esquerda americana”. Obama gosta tanto dele que chegou a citar a exortação apostólica “Evangelii Gaudium” num discurso. Os defensores dos valores, que publicamente se comprometeram com eles, estão preocupados com o reconhecimento amplo que tem o papa que agora estão se sentindo deslocados.
Para estes últimos, o comunicado de imprensa da Santa Sé sobre a visita de Obama foi pouco reconfortante. Ele faz referência à liberdade religiosa, à defesa da vida e à objeção de consciência entre os tópicos discutidos durante o encontro bilateral, ou seja, durante o encontro entre a delegação do EUA e autoridades da Secretaria de Estado do Vaticano, liderados pelo cardeal Pietro Parolin.
O fato de ter havido apenas duas pequenas linhas dedicadas a estes tópicos é, em última análise, indicativo de que esta agenda não está sendo firmemente apoiada. Na verdade, a Secretaria de Estado do Vaticano se sente enfraquecida, sem sabendo como será o seu futuro após a reforma da Cúria atualmente sob discussão.
O cardeal Parolin é bastante prudente em tomar alguma posição clara, e os bispos dos EUA não desejam aparecer como estando deslocados da agenda “soft” marcada pelas linhas de argumentação do papa Francisco. O papa acredita ser desnecessário ficar reiterando a doutrina da Igreja todas as vezes, como explicou numa conferência de imprensa durante o seu retorno do Brasil a Roma após participar na Jornada Mundial da Juventude, no último mês de julho.
Embora o pontífice possa não querer bater de frente nas questões importantes, há algumas pelas quais ele tem grande afeição. Uma destas é a do tráfico humano.
A questão do tráfico humano é ligada à discussão sobre a reforma das leis de imigração dos EUA. Esta reforma deve também abordar os problemas graves dos “indocumentados”, isto é, das pessoas sem documentos próprios que entram nos EUA a partir do México e que, se descobertos, são deportados de volta a seus países de origem sem possibilidade de retorno.
Os “indocumentados” chegam do México, mas nem todos são mexicanos. Há dezenas de milhares de sul-americanos que vão ao México tentar chegar aos EUA, em particular do Equador, de El Salvador e da Guatemala. Os que não conseguem cruzar a fronteira ficam no México, sendo extorquidos por cartéis do tráfico humano. Acredita-se que cerca de 400 mil imigrantes estejam “desaparecidos”: uma emergência humanitária que não está sendo reconhecida.
Mais do que o extenso relatório produzido pelos bispos americanos, foi a cordialidade e a franqueza de Jersey Vargas que, talvez, tenham feito o papa levantar a situação dos “indocumentados” durante seu encontro com Obama.
Jersey Vargas, de 10 anos de idade, se encontrou com Francisco no final da audiência geral em 26-03-2014. Ela foi escolhida para ser a porta-voz de uma delegação de 17 pessoas representantes de várias associações que defendem imigrantes sem documentação. Ela é a terceira de três irmãos. Nasceu nos Estados Unidos, então é uma cidadã americana. Mas seu pai entrou no país sem documentação. Este se encontrava na prisão e poderia ser deportado para o México em seguida. É assim que as leis imigratórias americanas estão separando muitas famílias.
Segundo um relatório produzido pela Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, entre os imigrantes “indocumentados” existem 60 mil crianças. Outros dados revelam que o governo Obama deportou cerca de 31 mil pessoas no ano passado.
Jersey Vargas pediu ao papa para que ele se envolvesse na situação de todos os “indocumentados”, e certamente o religioso assim o fez durante os 50 minutos de encontro privativo com o presidente Obama, interposto pela tradução dos dois intérpretes que ajudaram no diálogo.
Na realidade, o papa Francisco muitas vezes recorre à oração como ferramentas diplomáticas, mais do que a encontros de alto nível. Mas ele apresentou palavras severas contra o tráfico humano durante o seu primeiro ano de pontificado.
Falou do tráfico humano num discurso a um grupo de embaixadores na Santa Sé no último dia 12 de dezembro. “É uma desgraça” que as pessoas sejam tratadas “como objetos, que sejam extraviadas, agredidas e – muitas vezes – vendidas para diferentes propósitos e, no fim, mortas ou, de qualquer forma, prejudicadas física e espiritualmente, sendo então descartadas e abandonadas”, disse ele.
O papa falou aos embaixadores que o tráfico humano é “uma questão que me preocupa muito e que, hoje, está ameaçando a dignidade das pessoas”. Todos os países do mundo estão sendo afetados, de alguma jeito, por esta nova forma de escravidão, que frequentemente busca membros vulneráveis da sociedade: mulheres, crianças, deficientes, pobres e pessoas de lares rompidos ou em situações difíceis, declarou. Mesmo os que não têm crenças religiosas deveriam se preocupar com as vítimas do tráfico humano por pura “compaixão para com seus sofrimentos” e deveriam ajudar na libertação delas e a curar suas feridas, acrescentou.
Além disso, Francisco reconheceu os muitos esforços em curso no mundo todo para evitar o tráfico humano e proteger as vítimas. Muito embora os países estejam enfrentando o problema, disse, “não podemos negar que, às vezes, até mesmo autoridades públicas e membros das forças de paz têm sido contaminados” pelas forças corruptas do tráfico.
(O relato de um ex-soldado de paz denunciando a cumplicidade de seus colegas no tráfico durante a década de 1990 na Bósnia-Herzegovina foi a base para o filme “A Informante” de 2011.)
No dia 5 de março o papa Francisco enviou uma mensagem aos fiéis, no Brasil, relativa à ocasião da Campanha da Fraternidade, que este ano tem como tema “Fraternidade e o Tráfico Humano”, e cujo lema é “É para a liberdade que Cristo nos libertou”.
“Não é possível permanecer indiferente sabendo que há seres humanos comprados e vendidos como mercadorias! Levemos em conta as crianças que têm seus órgãos retirados, as mulheres enganadas e obrigadas a se prostituir, os trabalhadores explorados, sem direitos, sem voz, e assim por diante. Isto é tráfico humano!”
Posteriormente, no dia 18 de março, o Papa Francisco e Dom Justin Welby assinaram um acordo em que a Igreja Católica Romana e a Comunhão Anglicana irão apoiar uma iniciativa contra a escravidão, contra tráfico humano: trata-se da Global Freedom Network (ou Rede Global da Liberdade). Assinada no Vaticano, esta rede foi também subscrita por um intelectual muçulmano sunita em nome do Grande Imã da destacada Universidade Al-Azhar, no Cairo.
O Papa Francisco também apoiou um workshop sobre o “Tráfico de Seres Humanos: a escravidão moderna”, organizado pela Pontifícia Academia de Ciências e realizado nos dias 2 e 3 de novembro.
No encerramento do evento, os organizadores publicaram um “manifesto em conjunto com base nas sugestões apresentadas pelos participantes”, que incluía propostas para os meios de comunicação, instituições religiosas, organizações civis e setores empresariais trabalharem em cooperação no sentido de combater o tráfico humano.
Todas estas iniciativas provam que o esforço diplomático do papa Francisco está, em grande parte, focado no tráfico humano. Este é o núcleo da sua diplomacia. É realmente a única questão importante e urgente abordada pelo papa Francisco e pelo presidente Obama. O resto foi, em sua maioria, um diálogo diplomático amplo, baseado numa agenda bastante geral.
Monday Vatican, 31-03-2014.
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