quinta-feira, 24 de abril de 2014

Violência no Rio dá volta ao mundo

E volta-se a duvidar da capacidade do Brasil de organizar um megaevento.

Por Francho Barón* 
Nem os cinco anos que decorreram desde o início do projeto pacificador das favelas cariocas e nem o incentivo que supõe que seria a celebração dos dois maiores eventos esportivos do planeta (Copa do Mundo e as Olimpíadas) serviram muito para evitar que a violência caísse definitivamente sobre o Rio de Janeiro.
É verdade que o poder dos grupos de traficantes ficou consideravelmente debilitado nestes anos, mas, tal e como advertiam alguns especialistas, a cada dia que passa, fica mais evidente que as principais facções criminosas estão se concentrando nas áreas periféricas e delas seguem controlado a venda de drogas em algumas favelas estratégicas cravadas nos bairros mais carentes.
As armas de guerra voltam a disseminar pelas periferias ao mesmo tempo em que as Unidades da Polícia Pacificadora (UPP) não conseguem se concretizar em suas comunidades, que simplesmente veem nelas uma versão edulcorada da Polícia Militar, tristemente conhecida por estar corrompida até o tutano e dar rédea solta a uma truculência sem limites.
Mortes indiscriminadas
As denúncias de abusos e mortes indiscriminadas de civis que nada têm a ver com os grupos de traficantes acontecem semanalmente, ao mesmo tempo em que o Governo do Estado do Rio apunhala as favelas com mais conflitos, com mais efetivos e operações de caça e a captura de criminosas.
Em definitivo, o idílico período de distensão ficou atrás e a cidade mais turística do Brasil parece retornar inexoravelmente a tempos que pareciam ter ficado no passado: os do acosso e demolição ao tráfico, custe o que custar.
Dois fatores marcam este ponto de inflexão e colocam a Brasil em uma delicadíssima situação: em primeiro lugar, os moradores das favelas, que acumulam muito ressentimento por uma sociedade e  governantes que os trataram tradicionalmente como cidadãos de segunda, decidiram romper o silêncio.
Explorados pelos movimentos de protesto que se estenderam pelo Brasil desde junho do ano passado e amplificados pela presença em massa da imprensa mundial, os vizinhos das periferias se manifestam hoje com mais ira, com pedradas contra as unidades policiais, às que acusam de violar sistematicamente seus direitos, incendiando veículos, montando barricadas e cortando ruas e avenidas.
O estopim foi aceso com força e na segunda-feira à noite o fogo chegou a um bairro cuja segurança era considerada crucial para a organização local da Copa do Mundo.
Criminalidade decola
Aqui reside o segundo fator: Copacabana, o coração do Rio mais turístico, batizado por alguns como a Disney carioca, entrou com tudo em um clima de tensão gerado pelo aumento da criminalidade, as operações policiais e os golpes que, desde setembro do ano passado, voltam a propiciar algumas células reminiscentes do Comando Vermelho (CV), adentradas nos meandros mais inacessíveis da favela Pavão-Pavãozinho.
A cinquenta dias do início da Copa do Mundo, as autoridades cariocas e brasileiras não podiam imaginar que imagens como as da segunda-feira dariam a volta ao mundo, arrojando uma nova série de dúvidas sobre a capacidade do Brasil para organizar um megaevento sem incidentes.
Algumas artérias principais de Copacabana ficaram cortadas pelo tráfico enquanto os comerciantes e os bares em torno da favela fecharam suas portas no meio da tarde. As barricadas incendiadas, o corte do fornecimento elétrico, a gritaria e o estrondo dos intensos tiroteios e dos helicópteros policiais semearam o pânico na região, até o ponto de que dois conhecidos hotéis do turístico bairro pediram a seus hóspedes que não pisassem na rua.
Incendiar virou moda
Ao final da tarde confirmou-se a notícia de que um cidadão de 30 anos falecia depois de receber um disparo na cabeça. Não foi a única morte, já que horas antes também apareceu em Pavão-Pavãozinho o corpo sem vida de um bailarino de 25 anos.
Segundo sua mãe, Douglas Rafael da Silva Pereira tinha marcas de tortura e de quem foi atingido pela truculência policial. O relatório forense determina que o jovem sofreu “uma hemorragia interna provocada por traumatismo pulmonar”.
O episódio de Copacabana e os tiroteios registrados permanentemente na favelas da Rocinha, encravada entre os nobres bairros do Leblon e São Conrado, mostram claramente que o tão sucateado cinto de segurança da zona sul do Rio está bem longe de ser uma realidade.
“Virou moda incendiar e destroçar tudo depois que a polícia mata alguém”, diz com sarcasmo Jorge Luis Marconi, frequentador de Copacabana.
A insegurança impera
Os índices de insegurança têm caído claramente ao longo do último ano e pelas ruas do Rio circula a sensação generalizada de que se está perdendo a passos acelerados todo o terreno conquistado nos últimos anos.
“Estamos em ano eleitoral e não tomarão decisões importantes. Está claro que as UPPs estão em crises, que os crimes estão crescendo e que os avanços dos últimos anos estão em xeque neste momento”, opina o sociólogo especialista em segurança pública, Ignacio Cano.
As estatísticas divulgadas durante os últimos oito anos pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro arrojam números alarmantes: no Estado do Rio foram registrados durante este período 35.879 homicídios dolosos, 285 lesões corporais seguidas de morte, 1.169 roubos seguidos de morte, 5.677 mortes derivadas de intervenções policiais, 155 policiais militares e civis mortos durante o trabalho.
O fracasso das estratégias
Um total de 43.165 mortes ou, visto de outro ângulo, mais de 500 mortes ao mês provocadas por uma violência sem fim. As estatísticas não consideram os mais de 38.000 desaparecidos nem as mais de 31.000 tentativas de homicídio.
Segundo explica o coronel Frederico Caldas, Coordenador Geral das UPPs, “todos os grandes eventos que ocorreram no Rio de Janeiro têm em comum o fato de terem sido tranquilos. Foi assim na conferência Rio+20, na visita do Papa e na Copa das Confederações. Não obstante, nossa política de segurança não gira em torno dos grandes eventos, mas pretende garantir a segurança da cidade. Para celebrar um evento seguro há que partir de uma cidade segura”.
Mas algo está falhando nos planos criados, talvez com excesso de otimismo, pelo Governo brasileiro. A presidente Dilma Rousseff adianta que a o que se aproxima será lembrado como a “Copa das Copas”, em clara referência ao maior campeonato futebolístico do planeta que regressa depois de 64 anos ao país que mais troféus acumula a seu favor: a casa do futebol, o sol e a diversão.
Respira-se mal-estar
Cano, no entanto, adverte sobre um fator nada insignificante que poderia ser convertido no desestabilizador definitivo: que a seleção brasileira seja eliminada antes da final. “Conhecendo como se comporta a população brasileira em períodos de Copa del Mundo, podemos esperar uma recuperação da convulsão social se a seleção caísse antes de tempo. Se Brasil termina ganhando, a euforia coletiva sufocará qualquer possibilidade de protesto”.
Controlar as mais que possíveis manifestações será o grande desafio do governo brasileiro nos próximos meses. Os coletivos que protestaram com força em junho do ano passado estão em silêncio há meses.
As promessas realizadas naquele momento pela própria presidente para acalmar o clamor popular nunca chegaram a ser colocadas em prática. Inclusive as subidas do preço do transporte público que foram a dinamite das manifestações acabaram sendo aprovadas e atingindo a uma sociedade já sufocada por um nível de preços asfixiante.
Respira-se um mal-estar elevado que pode voltar a complicar a vida dos governantes brasileiros e inclusive a da própria Fifa. Por enquanto, é o grito da favela que é ouvido com mais força.
*Francho Barón é colaborador no Rio do El País, onde esta reportagens foi publicada originalmente.

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