A Luz e a Força Divinas estão em nós e em nosso meio (Mt 19 - 28)
Obs.: Eis, aqui, a Parte 1 do Artigo “A Plenitude do Reino inclui a Luta por Justiça. A Luz e a Força Divinas estão em nós e em nosso meio (Mt 19 - 28)”, de Gilvander L. Moreira, publicado no livro Prosseguir o Caminho com as Comunidades judaico-cristãs, uma Leitura do Evangelho de Mateus feita pelo CEBI-MG, Marysa Mourão Saboya (Org.), São Leopoldo: Ed. Oikos; Minas Gerais: CEBI, 2014, p. 127-143.
1. Iniciando a reflexão.
Evangelho não é apenas boa notícia, é também péssima notícia. Evangelho é boa, melhor dizendo, ótima notícia para os empobrecidos, os oprimidos, os aprisionados e os cegados, mas para ser ótima notícia para esses, evangelho é também péssima notícia para os enriquecidos, os opressores, os aprisionadores e para quem fura os olhos dos outros. O evangelho de Jesus Cristo não exclui ninguéma priori, antecipadamente, mas convida todas as pessoas para aderirem ao projeto do Evangelho, que é um caminho de vida e liberdade para todos, com todos e a partir dos últimos.
Considerando que o Evangelho de Mateus está organizado estruturalmente em cinco livros, contendo cinco blocos narrativos e cinco grandes e eloquentes discursos, cabe-nos agora refletir com e a partir do 5º e último livro, que compreende dez capítulos: Mt 19 - 28. Na nossa análise vamos pressupor que quem ler este texto aqui, terá lido primeiro as perícopes do Evangelho de Mateus, dos capítulos 19 a 28. Assim poderão entender melhor as reflexões que teceremos. Vamos pressupor também muitas informações e análises já tecidas nos textos anteriores que, com esse aqui, compõem um Texto Base sobre o Evangelho de Mateus.
Proporemos algumas reflexões na esperança de que funcionem como chaves que destranquem algumas passagens, muitas vezes, difíceis de serem entendidas. Para início de reflexão, cai bem observar que quase todo o 5º livro do Evangelho de Mateus está imerso em situações profundamente conflituosas e, por isso, tratam de assuntos espinhosos.
Veremos como Jesus exerce sua autoridade, que tipo de autoridade o Galileu exerce e que a construção do Reino do Céu inclui a luta por justiça. Não se restringe ao exercício da solidariedade, característica básica na primeira fase da ação missionária de Jesus de Nazaré.
Lidaremos com uma parte narrativa, (Mt 19 a 23), que nos revela: o Reino é universal, não exclui ninguém. Mas, para não excluir ninguém, precisa ser pensado e construído dentro do que foi proposto por Jesus de Nazaré: a partir dos últimos, os injustiçados.
Em Mt 19 a 23 várias questões complexas e espinhosas são colocadas a Jesus por fariseus, saduceus (= anciãos), discípulos e até por um jovem rico. Questões tais como:
a) Divórcio: pode-se fazer ou não?
b) Ressurreição: existe ou não?
c) Imposto: deve-se pagar ou não?
d) Vida eterna: qual o caminho para conquistá-la?
Segundo o Evangelho de Mateus, Jesus, com grande perspicácia, não se enrosca em nenhuma das questões complexas a ele levantadas. Com as rédeas na mão, Jesus pergunta aos fariseus: “O que vocês acham do Messias?” (Mt 22,41). No final de Mt 22 se diz: “Desse dia em diante, ninguém mais se arriscou a fazer perguntas a Jesus”. (Mt 22,46).
Em Mt 23, Mateus mostra Jesus condenando a dominação intelectual e a hipocrisia religiosa. Em Mt 24 e 25 temos o 5º Discurso do evangelho de Mateus: o Discurso escatológico. Em Mt 26 e 27 temos as narrativas da Paixão. E em Mt 28, as narrativas da ressurreição.
Logo no início do 5º livro de Mt (Mt 19 a 28) se diz que Jesus ao iniciar a 5ª e última grande parte do evangelho não está mais na Galileia, mas já na Judeia (Mt 19,1). O grande apoio que Jesus e seu movimento receberam no início da missão, quando a prioridade era ser solidário – “todos acorriam a Jesus”, agora não mais existe. Diminuiu o número de apoiadores e de seguidores/ras. Agora, a prioridade é a luta por justiça, o que implica contrariar os interesses de quem está no poder, seja poder político, econômico ou religioso. Esse é o pano de fundo que devemos considerar para bom entendimento de Mt 19 a 28. Para não estender muito a reflexão, priorizaremos a análise de algumas narrativas tentando suscitar chaves para uma interpretação libertadora.
2. Mt 19:Em questão: matrimônio, divórcio, celibato, crianças e ricos.
“Alguns fariseus” interrogam Jesus armando-lhe uma cilada (Mt 19,3). Levantam uma questão espinhosa: divórcio. Partem de uma perspectiva moralista e casuística. “Pode-se divorciar por qualquer motivo?” (Mt 19,3). Jesus não se esquiva do assunto complexo. Resgata o sonho divino para a convivência humana: homem e mulher se unirem e juntos perseverarem, partilhando sonhos, lutas, desafios, alegrias e dores. Mas os fariseus percebem que a realidade é mais complexa do que o ideal e recorrem a uma autoridade da história, Moisés, que mandou dar carta de divórcio à mulher que fosse abandonada pelo marido. Ou seja, Moisés sinalizou que a dignidade da mulher deve ser respeitada, que nenhum homem tem o direito de deixar a mulher abandonada na rua da amargura. Jesus pondera que é a “dureza de coração” que leva ao divórcio. Poderíamos pensar hoje quantas questões afetam negativamente as relações entre homem e mulher: sociedade capitalista que estimula o individualismo e o egocentrismo, programação televisiva que incentiva a irresponsabilidade nas relações afetivas, a cultura do descartável, do troca-troca etc.
A perícope Mt 19,3-9 mostra um Jesus que não ficou preso em questões doutrinárias ou dogmáticas, mas teve a grandeza de ajudar as comunidades a refletirem que devemos nos inspirar na História, nas boas utopias, mas não podemos ser duros e insensíveis às complexidades que muitas vezes tornam necessários os divórcios. Assim, o autor do Evangelho de Mateus mostra Jesus admitindo que, em certos casos, o divórcio é compreensível. Diz o texto “em casos de fornicação/porneia” (Mt 19,9).
Ao longo da história e, hoje ainda, entre os biblistas, há várias formas de interpretar o que seria “caso de porneia” que justifica o divórcio. Claro é que devemos excluir as ideias moralistas que reduzemporneia a traição sexual, adultério entendido de uma forma bastante estreita. Há casos em que a relação entre o marido e a mulher se torna um inferno, por inúmeros motivos. Nesses casos, sente-se que é melhor a separação. Se Deus é amor, ou o amor é Deus, não podemos, por obediência cega a doutrinas, discriminar quem passa a se sentir crucificada/o no matrimônio e luta para se libertar. Em nome de Mt 19,3-9 devemos ser compreensivos e generosos com quem, cansado de sofrer em uma relação falida, busca libertação, chegando à separação e até a procurar e encontrar outro amor.
Jesus, segundo Mateus, não justifica também seguir o caminho mais cômodo, como alegavam alguns discípulos que ainda não compreendiam o projeto de Jesus: “Então, não vale a pena casar-se” (Mt 19,10). Jesus alerta que cada um/a precisa descobrir e seguir a sua vocação. Não dá para colocar todo mundo no mesmo saco.
Muitos equivocados repreendiam as crianças que queriam se aproximar de Jesus. Jesus retruca pedindo para não proibir as crianças de se aproximarem dele. “O Reino do Céu pertence às crianças” (Mt 19,14). Ou seja, é a partir das crianças, especialmente as crianças empobrecidas, as mais fragilizadas, que o Deus da vida nos visita. Logo, devemos pensar e agir a partir dos fragilizados e injustiçados.
O autor do Evangelho de Mateus não é extremista, mas é radical ao abordar a relação entre pobreza e riqueza. Ele percebe a íntima relação existente entre pobres e ricos. Não há como alguns se enriquecerem sem empobrecer outros. Parece que Jesus e Mateus tinham claro que acumular bens é, ao mesmo tempo, roubá-los de outros. Mateus advoga um uso acertado dos bens materiais. Não dá para ser cristão e capitalista. A pessoa cristã deve viver sob o signo da partilha, enquanto as pessoas capitalistas vivem acumulando, concentrando riquezas e, assim, socializando miséria para outros.
Em Mt 19,16-30 se discute a relação entre a adesão ao projeto de Deus e adquirir grandes riquezas. Um jovem, enriquecido, pensa que lhe bastaria seguir certos mandamentos da lei de Deus e poder continuar gozando o luxo de grandes riquezas. Jesus, segundo Mateus, mostra que a observância dos princípios do decálogo, principalmente os preceitos que têm referência direta com as relações humanas – não matar, não roubar, não adulterar... – implica necessariamente no compromisso com a construção de uma sociedade justa e solidária. Implica ainda na não cumplicidade com uma sociedade desigual, onde uns têm demais, vivem no luxo, e a maioria sobrevive na miséria, crucificada pela falta de terra, de moradia, de dignidade.
“Vá, venda tudo o que tem, dê aos pobres e siga-me” (Mt 19,21), conclama Jesus. Mas isso não sugere apenas ações individuais isoladas que, mesmo sendo posturas heróicas, deixam intato o sistema econômico capitalista. O princípio da partilha deve ser vivenciado por todos para, assim, criarmos uma organização social a partir das necessidades das pessoas e não a partir do capital.
Ao propor partilha de bens, socialização dos bens, Jesus gera também uma subversão religiosa, pois havia a Teologia da Retribuição e da Prosperidade que via no acúmulo de bens uma bênção de Deus. Assim, Mateus faz questão de mostrar Jesus desmoronando o edifício da teologia da prosperidade. “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino do Céu.” (Mt 19,23). Os discípulos de Jesus ficam assustados com esse alerta.
Muita gente fica olhando para a metáfora do camelo passando pelo fundo de uma agulha e esquece-se de ver o espanto dos discípulos. De fato, a metáfora é forte e eloquente e revela uma grande dificuldade, mas o evangelho quer enfatizar o espanto dos discípulos, porque para eles, segundo a teologia da retribuição – da prosperidade – não havia contradição entre enriquecer-se e se salvar. Aliás, o enriquecimento era visto como caminho para a salvação e resultado das bênçãos divinas.
Jesus, na contramão do mundo de ontem e de hoje, mostra que o caminho para a salvação passa por relações de partilha, o que se coloca dentro da teologia da gratuidade. A fé em Jesus Cristo e no seu projeto é para ser vivida nas entranhas das relações humanas e sociais e não fora, como peruca na cabeça de careca. Além da fé em Jesus, é preciso ter a fé de Jesus: acreditar e investir no projeto de partilha, de sociabilidade, de convivência fraterna.
Gilvander Moreiraé frei e padre carmelita. Mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), do Serviço de Animação Bíblica (SAB) e Via Campesina. Autor de alguns livros: Compaixão-misericórdia, uma espiritualidade que humaniza (Ed. Paulinas, 1996), Lucas e Atos, uma teologia da História (Ed. Paulinas, 2004) e co-autores de vários livros do CEBI.
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