Um país radicalmente dividido entre ricos e pobres e candidatos sem projeto de governo.
Por Luiz Carlos Bresser-Pereira*
Estou há duas semanas fora do Brasil e, valendo-me desse pequeno distanciamento, me pergunto: qual é a natureza do mal-estar atual? Não estamos atravessando um período que possa ser chamado de crise. Não há nada ameaçante à nossa frente. Mas pesquisas vêm demonstrando que o nível de satisfação das pessoas vem baixando, que estão quase todos pessimistas.
Qual o foco desse mal-estar? A economia? Serão as taxas baixas de crescimento que incomodam a todos? É possível. A política? Talvez, tantas são as denúncias e as críticas aos políticos no governo federal e nos demais governos, independentemente dos partidos a que se filiem. Mas os políticos não mudaram nos últimos anos; não se tornaram nem melhores nem piores do que eram e, portanto, creio que o aumento da insatisfação com os políticos é mais um sintoma do que uma causa do problema.
Para a direita liberal, o problema está nos quase 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Antes disso, nunca o Brasil fora governado por um partido de esquerda. Mas os governos anteriores não foram melhores. Creio que o problema é mais profundo e está relacionado com o esgotamento do Ciclo Democracia e Justiça Social, que desde a transição democrática substituiu o Ciclo Nação e Desenvolvimento, que comandou a revolução nacional e industrial brasileira entre 1930 e o fim dos anos 1970.
Denomino assim os ciclos da relação sociedade-Estado que vêm presidindo o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social brasileiros. No primeiro ciclo - o ciclo do nacional-desenvolvimentismo de Vargas e dos militares-, a prioridade coube ao crescimento econômico. O Brasil cresceu a taxas extraordinárias e completou sua revolução capitalista, mas a desigualdade cresceu. A alternativa ao nacional-desenvolvimentismo era o liberalismo dependente e moralista que esteve fora do poder durante o período 1930-1980, exceto momentos pontuais, não obstante todos os golpes e tentativas de golpe de Estado em que se envolveu.
A transição democrática (1977-1987) não foi comandada pelos liberais, mas pelos desenvolvimentistas na oposição, agora desenvolvimentistas sociais, como atesta a Constituição de 1988. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o liberalismo dependente teve mais força, mas não chegou a ser dominante. Houve um substancial aumento do gasto social, e o governo resistiu à pressão americana para que participasse da Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
Terá o Ciclo Democracia e Justiça Social fracassado? Não, porque implantou a democracia e porque logrou a diminuição da desigualdade. Houve grande aumento nos gastos com a educação fundamental - algo que jamais havia sido feito antes no Brasil - e com a saúde, que se expressou no SUS - a universalização do sistema de saúde prevista na Constituição de 1988. Houve também o Bolsa Família e o aumento real do salário mínimo, que contribuíram para a redução das desigualdades.
Mas o custo dessa pequena diminuição da desigualdade foi tornar a classe média conservadora (como se viu pela divisão política entre ricos e pobres) e o crescimento baixo, principalmente porque a taxa de câmbio se manteve depreciada desde 1991. Excluindo-se os anos 1980, que foram de estagnação econômica causada pelo endividamento externo, a taxa de crescimento anual per capita entre 1931 e 1980 foi de 4% ao ano contra apenas 1,6% ao ano entre 1991 e 2013. Se definíssemos desenvolvimentismo pelo crescimento, nem se poderia falar nisso, mas como houve uma tentativa de planejar os investimentos na infraestrutura e uma política industrial ativa, a denominação desenvolvimentismo social é correta.
Creio que o baixo crescimento é um sinal de que o Ciclo Democracia e Justiça Social se esgotou, e talvez derive daí o mal-estar brasileiro atual. Durante mais de 30 anos, a diminuição da desigualdade foi um projeto, mas não se imaginava que o desenvolvimento econômico que a acompanharia fosse tão baixo. Hoje, falta aos brasileiros tanto projeto de desenvolvimento quanto projeto de distribuição. Teremos eleições no final do ano, mas os candidatos não têm projetos. Na verdade, nunca a sociedade brasileira foi tão dividida politicamente entre ricos e pobres, e falta à nação um projeto - sobra o mal-estar.
*Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito de economia, teoria política e teoria social da Fundação Getulio Vargas, em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo.
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