quarta-feira, 28 de maio de 2014

Dois homens que amavam os cachorros

O amargo fim de Leon Trotsky e seu carrasco é recontado em livro brilhante de Leonardo Padura.

Por Marco Lacerda*
“Não o matem! Este homem tem uma história a contar”. Foram  as últimas palavras do moribundo Leon Trotsky, sangrando no chão, depois de ser atingido no crânio pelo violento golpe de uma picareta de alpinismo desfechado por Ramón Mercader, no dia 21 de agosto de 1940, em sua residência de exilado no México. Os verdadeiros motivos por trás do atentado só seriam conhecidos no mundo meio século depois com a abertura política que pôs fim ao já falido império soviético.
Logo chegaram os guarda-costas e a polícia para prender um homem até então acima de qualquer suspeita. A história narrada em “O Homem que Amava os Cachorros”, do cubano Leonardo Padura, faz desse livro um suspense policial como poucos, assim intitulado por serem Trotsky e seu assassino apaixonados por cães. Jaime Ramón Mercader (1914 - 1978),  também conhecido como Jacques Monard ou Frank Jacson, foi um agente no exterior da URSS na época que Josef Stalin era o secretário geral do Partido Comunista.
“A guerra está próxima. O trotskismo tornou-se cúmplice do fascismo. Devemos dar um profundo golpe nesse movimento. Como? Decapitem-no” – ordenou Stalin. A divulgação em todo o mundo de uma mentira fabricada no Kremlin – a associação de Trotsky a Hitler – foi o ponto de partida do complô. A missão de Mercader era infiltrar-se na casa de Trotsky, em seu exílio no México, e cometer o atentado que entraria para a História como um dos crimes mais bárbaros e repulsivos. Graças à carnificina, em 1961 ele foi condecorado com a medalha de Herói da União Soviética, uma das mais altas comendas do país.
Um longo grito de dor
Mercader nasceu em Barcelona, mas passou grande parte da juventude na França com a mãe, Caridad del Río Hernández, depois da separação dos pais. Ainda jovem abraçou o stalinismo, foi preso por algum tempo e libertado quando a esquerda venceu as eleições e assumiu o governo da Espanha em 1936.
Na época sua mãe já era uma agente soviética. Pouco antes de irromper a Guerra Civil Espanhola, Ramón viaja a Moscou com o objetivo de ser treinado nas artes da sabotagem, da luta de guerrilhas e do assassinato. Em outubro de 1939, entrou no México com um passaporte falso, identificando-se como “Jacques Mornard”, um rico comerciante. Seduz uma das secretárias de Trotsky, Sylvia Agelof, e encontra-se duas vezes com o líder exilado sob o pretexto de ser um patrocinador belga de suas ideias.
Na manhã de 20 de agosto de 1940, graças à simpatia que conquistara da mulher de Trotsky, Natália Sedova, Mercader conseguiu entrar no escritório do líder bolchevique e consumar seu plano:
“Coloquei minha capa de chuva na mesa de forma que pudesse remover a picareta que estava dentro do bolso. No momento em que Trotsky começou a ler meu artigo, retirei a picareta do bolso do casaco, coloquei-a nas minhas mãos e, com meus olhos fechados, dei-lhe um forte golpe na cabeça. Trotsky emitiu um grito que eu nunca esquecerei, pois até hoje ecoa no meu cérebro. Trotski pulou em cima de mim e mordeu minha mão. Olhe, você ainda pode ver as marcas de seus dentes. Eu o empurrei e ele caiu no chão, mas logo se levantou e cambaleou para fora do escritório”.
Ramon Mercader foi conduzido às autoridades mexicanas, mas recusou-se a revelar sua real identidade. Mesmo assim foi condenado por assassinato e sentenciado a 20 anos de prisão, ficando os primeiros cinco em solitária. Em agosto de 1953 seu verdadeiro nome foi descoberto, mas suas conexões com a NKVD (Comissariado do Povo Soviético para Assuntos Internos) só viriam à tona com a abertura promovida pelo governo de  Mikhail Gorbachev, a partir de 1985, quando houve a dissolução de uma União Soviética em escombros e foram abertos os arquivos manchados de sangue da NKVD.
O pesadelo do stalinismo
Como conta Leonardo Padura em seu livro, o assassinato de León Trotsky, tido por Stalin como o seu maior rival, foi minuciosamente planejado durante três anos e custou US 5 milhões ao governo soviético. Foi a coroação de um regime marcado pelo terror, pelo medo e por perseguições implacáveis. Os próprios aliados de Stalin, responsáveis pelo cumprimento de suas ordens sanguinárias, acabaram sacrificados pelo ditador para que não restasse nenhuma testemunha de suas atrocidades. Estima-se que 20 milhões de soviéticos tenham sido impiedosamente exterminados por fuzilamento ou condenados à morte em campos de trabalhos forçados. Os que sobreviviam herdavam um país transformado numa imensa delegacia de polícia dedicada a proteger o poder.
Para manter em segredo a origem de suas atividades e incorporar a persona de Jacques Monard, Ramon Mercader deixou-se submeter a uma lavagem cerebral vizinha da lobotomia, descrita com detalhes arrepiantes nas 587 páginas da obra de Leonardo Padura, resultado de uma investigação fenomenal – jornalismo do mais alto nível. O plano macabro de Stalin era que Mercader matasse Trotsky e que os guarda-costas do proscrito o matassem em seguida.
Ironicamente, Trotsky o salvou na esperança de que, uma vez preso e interrogado, ele revelasse quem era o mandante do crime e assim viesse à luz a podridão do império de horror criado por Stalin. Mercader nunca falou, por isso foi poupado. Assim transformou em mártir um homem àquela altura condenado ao esquecimento. Mercader passou a viver em um mundo convertido num planeta para o qual não tinha visto de entrada. Deu o melhor de sua vida por uma causa e garantiu a perdição de sua alma. Acabou marginalizado pelo desprezo e pelo asco mundiais por seu protagonismo em um  episódio de morbidez sem par.
Difícil entender porque apenas Hitler entrou para a História como o grande vilão da II Guerra. Stalin foi um carrasco igual ou pior. Sua crueldade não obedecia apenas à necessidade política ou ao desejo insaciável de poder e autoglorificação: devia-se também ao seu ódio pelos homens, pior que isso, ao seu ódio pela memória dos homens, principalmente  aqueles que o ajudaram a criar mentiras com o objetivo megalômano de destruir a História e reescrevê-la à sua maneira demente. Não eliminou Trotsky por ser um traidor, como mentiu para o mundo, mas porque o temia e odiava.
"O assassinato de Trotsky lembrado pelo neto". Veja o vídeo:
Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do DomTotal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário