quarta-feira, 28 de maio de 2014

Educação e cultura - Johan Konings*

Cultura da pessoa é o fruto da educação.

Embora esteja com vontade de escrever algo sobre “Deus” (assunto prioritário para um teólogo) sinto-me pressionado para voltar mais uma vez ao assunto da educação, que eu vejo como extremamente premente – e quem diz que isso também não é dizer algo de Deus?
Em 15 de março de 1985, o Ministério da Educação e Cultura (MEC), criado em 1953, foi “aliviado” pela criação do Ministério da Cultura (MinC). Passa a se chamar Ministério da Educação, mas a sigla MEC continua... Assim fica estabelecida e, ao mesmo tempo, maquiada, a separação entre cultura e educação.
Há certa lógica nessa infeliz separação. Para muitas pessoas, cultura são produtos, eventos, até artesanato para vender aos turistas... Ou então, algo que existe na França ou alhures, mas não é muito útil aqui. “O senhor é europeu, tem cultura” foi a frase chocante que me foi dirigida quando cheguei ao Brasil, mais de quarenta anos atrás. Felizmente, um dos primeiros titulares do novo ministério nacionalizou a cultura, declarando que “cultura [no Brasil] propriamente só existe no eixo Rio-São Paulo”...
E a educação? Vasculhando a internet, reencontrei os slogans de décadas atrás: “povo limpo, povo educado” ou “cidade limpa, povo educado”. Mas devo acrescentar que, nessas quarenta anos, a instalação e a utilização de lixeiras públicas não evoluíram muito... Pois é, educação não é treinar as pessoas para utilizar as lixeiras (mas é também isso!) ou para ter “apresentação educada” ao solicitar emprego (o que não é desprezível). Educação é muito mais do que isso. É a base da cultura. E cultura não são produtos ou eventos, mas o “cultivo” da pessoa, o desenvolvimento intencional das melhores qualidades que temos dentro de nós.
Mas aí surge um problema: quando você diz “melhor”, você estabelece uma escala de valores. Ora, quais são, hoje, os valores? No reinado do “vale tudo”, o que é um valor melhor? O resultado é visível. Jovens desmiolados dirigindo carros de som durante a noite inteira, sem a mínima restrição. Comportamentos selvagens na estrada, no metrô. Linchamentos até. E no meio de tudo isso, inventa-se o “vale-cultura”, para alimentar eventos de gosto duvidoso, sem dúvida regados com outros ingredientes. Cultura se adquire porque se a procura intencional e intensamente, não porque é jogada por cima da gente. Ou será que se trata de uma política de emprego para duplas sertanejas?
Cultura da pessoa é o fruto da educação. Mas, voltando ao MEC, que é titular da educação (e deveria sê-lo também da cultura): onde ficou a educação? So se fala em ensino. Ora, o ensino escolar é apenas uma pequena parte da educação. Não crítico os executivos da educação federais, estaduais, municipais... entraram numa estrutura que só serve para manter o ensino. Espero que o façam bem. Mas onde fica a educação (e a cultura)?
Claro, a educação começa no dia do nascimento, e provavelmente antes, se podemos acreditar certos psicólogos e pedagogos. É, em primeira instância, incumbência dos pais. Mas será que alguém pode dar o que não tem? Olhe, não estou falando do “lúmpen”. Chegando ao Brasil vi fazendas em que cada criança tinha um “servo” à disposição, para cumprir seus mínimos desejos, como no Egito dos faraós. (Talvez o número desses casos tenha diminuído... porque o número dos filhos diminuiu.) Como é que assim se ensinam a responsabilidade, a ordem, a eficiência nas próprias coisas –aquilo que esses mesmos filhos vão, mais tarde, exigir tiranicamente dos que devem sofrer sua convivência e poder. E nem quero falar de valores mais abstratos como sejam a reflexão, o estudo, a criatividade. Não é por nada que, muitas vezes, quem mais contribui para a cultura pública são os que provêm de ambientes mais humildes. Se não tiverem ficado marginalizados por causa do ambiente em que cresceram...
E aqui surge mais uma tarefa: trabalhar as condições sociais, sem, contudo, tirar do povo a consciência da responsabilidade (por si e pelos outros). Disse Florestan Fernandes que “um povo educado não aceitaria as condições de miséria e desemprego como as que temos”. Isso aponta para um círculo vicioso: por ser marginalizado, o povo não chega ao nível de educação que deveria ter para não aceitar sua marginalização. Como romper este círculo? As políticas afirmativas em favor de minorias ou mesmo de maiorias minorizadas constituem, sem dúvida, uma tentativa a ser levada a sério, embora sejam, pela própria natureza, destinadas a desaparecer quando tiverem cumprido sua missão.
Ora, mais à disposição da maioria dentre nós está o empenho pessoal em levar a sério o próprio cultivo e o das pessoas próximas, crianças ou adultas, mediante atitudes conscientes em todos os campos da vida, desde a cozinha até a rua e a faculdade. Um dia, em São Paulo, num cruzamento bem movimentado, alguém empurrou para minhas mãos alguma publicidade que nem olhei. Joguei no chão. Imediatamente apareceu um jovem, de bicicleta, apanhou o papel e me devolveu, “educadamente”...

*Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara. 

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