Tenho medo de me afogar nas lembranças, por isso remo, remo ao redor de mim mesmo.
Por Ricardo Soares*
Dura rotina sem espaço para muita fantasia, o bom eram as raras vezes que molhávamos os pés na Praia Grande, construindo castelos de areia e olhando o tempo passar com nossos calções listrados. Eu, magro e banguela. Meu pai, gordinho e feliz, ainda mais pelas ostras que às vezes ancoravam em nossa mesa. Cidade Ocian, Vila Mirim, Vila Tupi. Um cenário antigo saído de algum filme do neo-realismo italiano. Éramos italianos e não sabíamos.
A vida não deu tantos bons empregos a meu pai, mas lhe deu três filhos bem diferentes. Um menino e duas meninas. E, ao que consta, ele sempre exerceu com gosto e ciúme sua paixão pela família. Um gosto que suportava as reprimendas quando tomava sopa fazendo barulho com a boca ou quando fumava demais no meio das refeições. Um gosto que suportou as sutis humilhações que os mais bem aquinhoados da família lhe impunham. Homem do interior. Moreno e troncudo. Quase grosso, mas com um refinamento que ia muito além das etiquetas. O gosto pela sinceridade, o intuitivo nojo a toda espécie de hipocrisias. O desgosto por ter que enfrentar os rituais entediantes dos batizados, casamentos, noivados e finais de ano onde todos fingem viver em harmonia.
Esse interior distante que marcou as feias unhas dos seus pés, afinal, era Assis, Rancharia, Mumbuca ou Presidente Prudente? Sua alma carente passou por todos esses recantos, mas veio procurar fincar raízes em uma pensão barata no bairro da Liberdade, quando lá ainda não era o reduto dos orientais. Como será que você via o sol se pondo a partir de uma janela da rua Taguá? E isso lá importa, a essa altura? Importa afinal a água dos anos que já me bate pela cintura? Tenho medo de me afogar nas lembranças, por isso remo, remo ao redor de mim mesmo.
*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) . Escreve todos os dias também o Diario do Anonimato do Mundo em www.revistapessoa.com
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