domingo, 11 de maio de 2014

O desafio da desigualdade

O capitalismo produz mecanicamente desigualdades insustentáveis e arbitrárias.

Por Luis Fernández-Galiano*
A desigualdade arbitraria coloca em questão os fundamentos da democracia. Essa é a pedra angular da colossal obra de Thomas Piketty, Le capital au XXIe siècle. Desde sua publicação por Seuil (2013) durante o outono, o livro do economista francês suscitou um extraordinário debate em ambos lados do Atlântico que, sem dúvida, irão animar o lançamento da versão inglesa nesta primavera. Contudo antes mesmo de que a edição da Harvard University Press venha à luz, os mais influentes meios de comunicação anglo-saxões (The New York Times, The Wall Street Journal, The Guardian, The Economist ou The New Yorker) se ocuparam “in extenso” das teses de Piketty, um pesquisador da desigualdade econômica de brilhante carreira acadêmica e estreitos vínculos com o Partido Socialista Francês e que, em 2012, foi eleito por Foreign Policy entre os Top 100 global thinkers por sua análise sobre a divisão da riqueza, que entre outras coisas deram origem ao lema do movimento Occupy Wall Street: “Somos 99%”.
Ao realizar comparações geográficas e históricas que o permitiram entender a distribuição espacial da desigualdade e sua evolução no tempo, Piketty usa frequentemente o corte estatístico de 1% para estimar as porcentagens de renda e de riqueza que, em cada país e período, controlam este segmento da população, e suas conclusões são devastadoras. Buscando superar preconceitos ideológicos ou especulações teóricas, seus dados – que em certas ocasiões remetem até o século XVIII – descrevem um capitalismo essencialmente patrimonial: no qual o crescimento, a concorrência e o progresso técnico não provocam espontaneamente a nivelação econômica, onde a distribuição da riqueza está baseada, principalmente, em todas as relações políticas de força, e onde a herança, suporte essencial do privilégio, não está longe de alcançar, em nosso tempo, a importância que teve durante séculos.
Resultado de 15 anos de pesquisa – na qual colaboraram outros economistas, entre eles Emmanuel Saez e Anthony Atkinson -, a obra magna de Piketty descreve, em uma linguagem cheia de dinâmica, a relação entre o capital e as rendas, tanto na velha Europa como no Novo Mundo, também analisa detalhadamente a estrutura das desigualdades nas rendas e no patrimônio e, ao fim, propõe mecanismos fiscais – e, de forma destacada, um imposto global sobre o capital – para sustentar “o Estado social do século XXI”. Evitando tecnicismos (e modelos matemáticos a um anexo na Internet), as quase 1.000 páginas do livro tratam, a partir de uma perspectiva política e histórica, de questões essenciais de nossa época, estendendo-se inclusive a temas mais periféricos em seu relato como a dívida pública, a mudança climática ou a construção europeia.
Ainda que suas propostas fiscais tenham sido polêmicas e ainda que sua estimativa das desigualdades entre as classes sociais não tenham em conta a crescente nivelação econômica entre os diferentes países, é difícil ignorar sua tese essencial, argumentada com uma impressionante artilharia de dados estatísticos e históricos, e que podem ser tomados de acordo com suas próprias palavras: “O capitalismo produz mecanicamente desigualdades insustentáveis e arbitrarias, colocando radicalmente em questão os valores meritocráticos nos quais se baseiam as sociedades democráticas”. A redução das desigualdades nos países desenvolvidos desde o início do século XX até os anos sessenta foi produto das guerras e das políticas públicas geradas por seu impacto, assim como o aumento da desigualdade desde os anos setenta e oitenta, que devem muito aos retrocessos políticos em matéria fiscal e financeira, porque não existe – assegura – nenhum mecanismo nivelador natural ou espontâneo.
Meticulosa e eloquentemente, Piketty mina duas crenças otimistas que ainda são compartilhadas por muitos: que a racionalidade técnica fez triunfar o capital humano sobre o capital financeiro e imobiliário, e que a prolongação da vida substituiu a guerra de classes pela guerra das idades. Julga ambas as crenças como ilusórias, conforme sua estimativa sobre a importância crítica do capital não humano e do protagonismo deste na determinação da desigualdade em cada grupo de idade.
No século XIX, Marx teorizou sobre a obstinada tendência do capital a acumular-se inapelavelmente em cada vez menos mãos, em meados do século XX e sobre a influência dos processos igualitários que estavam em marcha, Simon Kuznets previu a redução crescente das desigualdades por efeito da combinação do crescimento econômico e da concorrência.
Piketty estendeu os gráficos de Kuznets até nossos dias, constatando a inversão das tendências igualitárias durante as últimas décadas, distanciando-se tanto da acumulação infinita e da divergência perpetua, ambas implícitas na visão apocalíptica de Marx – apesar da homenagem que lhe rende o título – como daqueles que chama “contos de fada” subjacentes à mítica curva de Kuznets, que pode ser compreendida como um produto ideológico da guerra fria.
Para Piketty, que pleiteia uma economia política e histórica capaz de superar “a paixão infantil pelas matemáticas” desta disciplina (uma paixão a qual ele mesmo sucumbiu com uma tese de doutorado desta natureza, que o levou a ser contratado como professor pelo MIT aos 22 anos), as economias de mercado contêm em si forças de convergência ligadas a difusão do conhecimento, mas também poderosas forças de divergência que supõe uma ameaça para as sociedades democráticas. A mais importante delas, que abrevia com a fórmula r>g, é a manutenção durante longos períodos do rendimento do capital muito acima das taxas de crescimento, o que torna empresários em rentistas e exacerba as desigualdades, como o resultado de que “o passado devora o porvir”.
Muitos julgarão este livro, que frente à ortodoxia neoliberal propõe um vigoroso papel regulador das instituições públicas, como um produto desse obstinado estatismo francês que está na origem das atuais tribulações econômicas do Hexágono. Contudo seu empenho em colocar a desigualdade no coração da análise econômica, Le capital au XXIe siècle  entra em sintonia com um extenso e difuso movimento planetário que põem em questão os privilégios das elites políticas e econômicas, assim como a racionalidade das estruturas que suportam seu domínio e a verosimilitude dos relatos nos quais se apoia a manutenção do status quo global.
Estando ou não de acordo com suas conclusões, a obra torna visíveis as bases econômicas de um mal-estar social e um descontentamento político que se manifestam em toda a parte, e o faz através de uma investigação rigorosa com uma escrita elegante. Leia-o.
* Este artigo de Luis Fernández-Galiano, arquiteto e professor, foi publicado originalmente por Almendron.

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