sexta-feira, 23 de maio de 2014

O que é religião?

Trata-se de um traço constitutivo da humanidade que não pode ter sua definição restringida.

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer* 

Além de ser título de um famoso livro de Rubem Alves, a pergunta com que aqui iniciamos esta crônica – O que é religião? – impõe-se como obrigatória.  E o móvel dessa obrigatoriedade é a decisão de um juiz federal do Rio de Janeiro que afirma não constituírem religiões as manifestações afro-brasileiras.

O episódio que motivou esta sentença teve início no começo do ano, quando a Associação Nacional de Mídia Afro levou ao conhecimento do Ministério Público Federal um conjunto de vídeos veiculados na internet por meio do Youtube que insultavam as religiões afro-brasileiras.  Segundo tais vídeos, as religiões de origem africana estariam ligadas ao mal, ao demônio, e seriam magia e bruxaria, além de estarem associadas a crimes, como o uso de drogas, a doenças como a Aids etc.
Profundamente ofendida, a comunidade afro procurou o MPF a fim de conseguir a retirada dos vídeos do ar. E o órgão público, por entender que tais vídeos disseminam o preconceito, a intolerância e a discriminação, enviou imediatamente recomendação ao Google, que controla o Youtube, para que retirasse tais materiais da internet.  A resposta do Google veio negativa, argumentando que o material veiculado nos vídeos era expressão da liberdade religiosa do povo brasileiro.  Diante disso, o MPF foi à Justiça para conseguir a retirada dos vídeos.  E o juiz, por sua vez, deu sentença negativa, não argumentando com a intolerância mas com o fato de que as manifestações religiosas afro-brasileiras não poderiam ser chamadas de religião.
Para fundamentar sua afirmação, o magistrado declara que as religiões afro – a umbanda e o candomblé – “não contêm os traços necessários de uma religião”.  Tais traços, como os enumera o juiz, seriam: um livro ou um texto-base, como a Bíblia e o Corão, uma estrutura hierárquica e um Deus a ser venerado. Parece-nos que aí reside o mal-entendido por parte do magistrado e a fragilidade de sua argumentação.  Sua concepção do que seja religião não corresponde ao que se entende por religião na área especializada no tema, que é a dos estudos da religião e da teologia.
A religião é uma das experiências mais antigas e constitutivas da humanidade.  Desde muito cedo, o ser humano sentiu em si o desejo da imortalidade e a sede da transcendência.  Buscou entender a morte e ritualizou sua celebração.  Criou rituais que lhe permitissem comunicação com os que já se tinham ido desta vida.  Identificou suas divindades tomando por parâmetros os ciclos da fertilidade, os astros do céu, os fenômenos da natureza.  Descobriu deuses no universo no qual viviam e que eram sua morada: uma morada cheia de deuses, como já dizia o filósofo Tales de Mileto, 5.000 anos antes de Cristo. Transmitiu pela tradição oral suas experiências e foi criando correntes de tradição que se identificavam com aquela religião e aquela maneira de conceber a vida e a transcendência.
É tardio, portanto, no que diz respeito ao tempo histórico da humanidade, o surgimento das religiões monoteístas, que instauram a crença em um só Deus, pessoal, absolutamente transcendente, que não se identifica com os fenômenos da natureza ou os ciclos da fertilidade, e não tem áreas de atuação específicas como os deuses gregos do Olimpo. O judaísmo será a primeira religião monoteísta que em determinado momento faz convergir a riqueza de sua tradição em um livro ou texto sagrado.  A ele se seguiu o cristianismo, com as mesmas características e uma diferença: a proclamação da fé na encarnação de Deus em um homem: Jesus de Nazaré. Posteriormente surgiu o islamismo, que crê em um só Deus e em seu profeta Maomé, a quem teria sido revelado o Corão, que é para os muçulmanos o próprio Verbo feito livro.
É fácil constatar, portanto que, para o juiz, religião é sinônimo de monoteísmo.  Ao restringir assim sua definição, o magistrado deixa de fora todo o imenso mundo das religiões orientais, milenares, cósmicas e mais antigas do que o judaísmo.  E igualmente todo o universo das religiões africanas, surgidas no processo da tribalização característica dos povos africanos.
A umbanda e o candomblé são, sim, religiões.  Possuem uma tradição oral, um sistema ritual, critérios para a admissão de fiéis e um processo de iniciação para os mesmos.  Apenas não são monoteístas, mas isso não impede que sejam plenamente religiões.
Duas coisas se destacam como positivas neste lamentável episódio.  A primeira é a atitude digna e pacífica dos umbandistas, que protestaram de maneira respeitosa contra a sentença, sem violência nem desordem.  A segunda é a honestidade do próprio juiz que, finalmente, reconhece serem os cultos afro-brasileiros religiões.
No entanto, a decisão de não retirar os vídeos da internet é mantida em nome da liberdade de expressão. A nosso ver, esta liberdade entra em rota de colisão com a tolerância necessária para a convivência pacífica e humanizadora.  No momento em que assistimos horrorizados ao que sucede na Nigéria, não seria adequado privilegiar a tolerância e o respeito à diferença em nome do bem comum?  Fica o leitor com a pergunta e a reflexão dela derivada.
SIR/Jornal do Brasil, 22-05-14.
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de vários livros, entre les, "Um rosto para Deus" (Ed. Paulus) e "O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença" (Editora Rocco). - agape@puc- rio.br

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