segunda-feira, 5 de maio de 2014

Um diálogo muito especial

Em meio a uma caminhada pela praia, uma conversa com Deus sobre a natureza e os homens.

Por Evaldo D'Assumpção*

Quase todas as manhãs, faço minha caminhada pela praia, na qual reúno o exercício necessário para a manutenção de boas condições físicas, aos 76 anos de idade, a um tempo de meditação, contemplação e oração, essenciais à minha melhor condição psíquica e espiritual. Enfim, um cuidado completo para com a minha totalidade.

E foi exatamente numa dessas manhãs, quando o dia amanheceu parcialmente nublado, que tive um diálogo muito especial com Deus.
Vendo as poucas pessoas que caminhavam pela areia, como médico, veio-me à cabeça se elas estariam protegendo sua pele contra os temidos raios ultravioletas. E contemplando a beleza do amanhecer, perguntei ao Criador por que ele havia criado a luz solar com raios, que além de contribuírem para o bronzeado tão almejado pelos turistas que procuram a orla marítima, provocam lesões, muitas vezes malignas, em nosso revestimento cutâneo.
Perguntei e fiquei pensando em quantas outras coisas Deus poderia ter feito melhor, somente com coisas boas e sem efeitos colaterais, geralmente ruins. Nesse questionamento, comecei pelo sol e seus raios que aquecem e fertilizam, mas que ferem; os animais urbanos e silvícolas, a maioria tão linda como alguns tipos de cães e gatos, os leões, as panteras, as onças pintadas, mas tão agressivos. Não pude deixar de lado a água, tão essencial para a vida, além de tranquilizante nos rios e nas ondas que deslizam sobre as praias, mas que afogam, inundam, destroem. E como esquecer as flores, que colorem a paisagem e exalam suaves perfumes, mas com espinhos que ferem, secreções que irritam e até matam.
Nesse rol de coisas boas, mas que julgava imperfeitas, não podia terminá-lo sem o principal espécime: o homem, cuja anatomia e fisiologia são inimitáveis e de uma precisão inimaginável, apesar de toda a tecnologia de que hoje dispomos. Mas capaz de se transformar na mais violenta e destrutiva das feras, tanto quanto urdir as maiores perversidades para alcançar satisfações pessoais.
Sentado à beira da praia quase vazia em que estava, surgiu, como um murmúrio das ondas, como uma brisa suave acariciando o meu rosto, uma voz melodiosa que mansamente tocou minha mente e as fibras do meu coração, dizendo:
“Compreendo você questionar o que lhe parece falho, ou até mesmo absurdo. Contudo, as coisas não são como a vocês, os humanos, muitas vezes lhes parece. Ao planejar o universo, em suas dimensões infinitas, tive de estabelecer regras para que seu equilíbrio jamais fosse quebrado. Por isso, algumas aparentes incoerências fazem parte dessa harmonia em que vivem as galáxias, e tudo o que você vê e imagina existir, ao contemplar os céus. E muito mais ainda, que você nem sonha existir, mesmo com os recursos da mais sofisticada tecnologia desenvolvida pela humanidade, usando os dons que lhe dei quando a criei.
Você questiona os efeitos negativos dos raios solares, contudo eles foram e continuam necessários para as miríades de reações químicas que criam e mantém novas vidas na face da terra. E, para proteger os humanos, dei-lhes uma das minhas melhores criações, aparentemente a mais singela, porém uma das mais sofisticadas: a pele. Poucas pessoas sabem que ela é o maior órgão do corpo humano e com incontáveis funções e finalidades. Por isso mesmo exige cuidados e preservação, os quais muitas vezes lhe são sonegados, com objetivos tão fúteis quanto é uma ilusória e artificial beleza. Cirurgias, produtos químicos agressivos, aplicações de radiações artificiais, tudo com efeitos secundários muito piores do que os dos raios ultravioleta. Que se hoje são danosos para a humanidade, é em função somente das condições que vocês geraram, imprudentemente, destruindo as camadas protetoras que eu havia criado para que tal não acontecesse. Falo, por exemplo, da camada de ozônio.
Os animais que você chama de selvagens e ferozes foram criados para viver livremente nas selvas. Contudo, a ganância do humano o fez avançar sobre áreas das quais não precisava para uma vida com qualidade, roubando deles seu habitat natural. Mas também os capturando para se tornarem objetos de diversão em suas casas, nos circos e zoológicos, ou matando-os para expô-los como troféus, ou ainda para se fazer vestimentas, exibidas como sinais de riqueza e poder. Grande parte do equilíbrio que estabeleci vem sendo desrespeitada por razões totalmente fúteis. E com esse desequilíbrio instituído, vêm as consequências. Não por ordem ou desejo meu, mas como consequência natural da violência praticada pelos humanos.
Hoje vocês falam tanto em meritocracia. Palavra bonita, muito utilizada, mas quase nunca respeitada. Você sabe que fui eu quem a criou, quando lhes dei o livre-arbítrio? Pois é com ele que vocês decidem o que vão ou não fazer. E as consequências são mérito ou demérito exclusivo de vocês. O livre-arbítrio dignifica o humano, pena que ele quase nunca se dá conta disso!”
A voz silenciou-se, mas aquela mensagem gravou-se em mim. Sai caminhando pela praia, pensando em como nós somos os únicos responsáveis pelas mazelas do nosso tempo, cabendo-nos, a nós todos, a responsabilidade de buscar o resgate do objetivo para o qual fomos criados: ser genuinamente felizes.
*Evaldo D'Assumpção é médico e escritor.

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