Eis a grande verdade: somos maiores e mais importantes do que os males que, hoje, nos ameaçam.
Por Dom Orani João Tempesta*
A defesa da vida em qualquer circunstância, porém mais especialmente quando ela se encontra fragilizada frente a diversas ameaças, não é apêndice, mas, ao contrário, é parte essencial da missão profética (de denúncia e de anúncio) e caritativa (de ação) da Igreja. Junto com a revelação, quando a Igreja defende a vida, ela tem razões humanas do próprio direito natural. Porém, é claro, nós partimos de nossa visão cristã, mas que vai exatamente ao encontro do verdadeiro valor da vida humana.
Sim, herdeira da Lei de Deus proposta no Antigo Testamento, a Mãe Igreja sustenta, com toda convicção, o preceito: “Não matarás!” (Êx 20,13) e recorda com o Senhor Jesus a necessidade de que “todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Ora, em uma sociedade marcada pelo egoísmo e pela consequente desvalorização do semelhante, há forte menosprezo a esse princípio bíblico.
Isso é o que diz o Concílio Vaticano II ao recomendar a reverência a ser dada a cada homem, de maneira que todos considerem o próximo, sem exceção, como um “outro eu”, tendo em conta, antes de tudo, a sua vida e os meios necessários para levá-la dignamente, não imitando aquele homem rico que não fez caso algum do pobre Lázaro. “Além disso, são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo em que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador” (Gaudium et Spes n. 27).
Feita a constatação que poderia ser, a justo título, chamada de quadro de denúncias de alguns dos males do mundo em nosso tempo, o mesmo Documento se volta, posteriormente, para a missão que têm os seus filhos, desde o bispo até os leigos, perante o problema: “Quanto aos Bispos, a quem está confiado o encargo de governar a Igreja de Deus, preguem juntamente com os seus sacerdotes a mensagem de Cristo de tal maneira que todas as atividades terrenas dos fiéis sejam penetradas pela luz do Evangelho. Lembrem-se, além disso, os pastores que, com o seu comportamento e solicitude cotidianos, manifestam ao mundo o rosto da Igreja com base no qual os homens julgam a força e a verdade da mensagem cristã. Com a sua vida e palavra, juntos com os religiosos e os seus fiéis, mostrem que a Igreja, com todos os dons que contém em si, é, só pela sua simples presença, uma fonte inexaurível daquelas virtudes de que tanto necessita o mundo de hoje”.
Mais: “Por meio de assíduo estudo, tornem-se capazes de tomar parte no diálogo com o mundo e com os homens de qualquer opinião. Mas, sobretudo, tenham no seu coração as palavras deste Concílio: ‘Dado que o gênero humano caminha hoje cada vez mais para a unidade civil, econômica e social, tanto mais necessário é que os sacerdotes, em conjunto e sob a direção dos Bispos e do Sumo Pontífice, evitem todo o motivo de divisão, para que a humanidade toda seja conduzida à unidade da família de Deus’.” (n. 43).
Esta é, portanto, a nossa missão. Ela nos foi confiada pela Igreja. Daí que a celebração do Tríduo Pascal, no qual celebramos a paixão, morte e ressurreição do Senhor nos faz lembrar, com tristeza, das tantas formas de menosprezo à vida presentes entre nós. Uma das situações mais revoltantes que se percebe é a utilização das pessoas manipuláveis a serviço de projetos inconfessáveis. Tal tristeza, contudo, longe de lançar desânimo e fazer-nos parar na morte, deve estimular cada um a ajudar na remoção da vergonhosa pedra que tapa os tantos sepulcros encobridores da morte na nossa sociedade, a fim de melhor vermos a realidade sombria em que estamos e, na denúncia e na ação caritativa, sermos arautos de ressurreição de tantos Lázaros aprisionados nos sepulcros do século XXI (cf. Jo 11). Afinal, como nos lembra a Campanha da Fraternidade deste ano “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1).
No entanto, nem sempre é fácil tentar melhorar o mundo plural e confuso de hoje. Pode haver, não sem razões pessoais, na maioria das vezes, quem a esta altura da reflexão pense ou mesmo diga que já “não há mais jeito”, “o mundo está no fim”, “se Deus não intervir de modo retumbante na história estaremos perdidos”, entre outras afirmações negativistas. Parece que os tempos são tão maus que nada mais há por fazer. Restar-nos-ia apenas chorar e esperar o fim de tudo, dado que, em meio a tantas maldades, não vale a pena semear a Boa Nova de Cristo.
Respondemos, todavia, que esse desespero por mais aterrador que pareça não é novo. Ao contrário, é algo muito humano ou antropológico. Sim, em tempos difíceis, os seres humanos somos, naturalmente, levados a pensar que não há mais jeito, que não sairemos da crise em que estamos imersos, pois as forças do mal parecem super potentes. Um exemplo concreto de tudo isso que acaba de ser afirmado está em Santo Agostinho de Hipona (430), Padre da Igreja no século V.
Em sua época, assim como na nossa, muitos reclamavam: “Os tempos são maus, são ingratos! Como era feliz o passado!” O santo Bispo respondeu: “Os tempos somos nós. Sejamos bons e os tempos serão bons. Quais formos nós, tais serão os tempos”. Ora, esse pensamento do Santo do Norte da África derruba as falas negativistas que tanto ontem quanto hoje circulam por aí, fazendo parecer que devemos capitular ou nos entregar diante do mal que avança. Agostinho nota que nós somos maiores que os tempos, porque nós é que fazemos os tempos ou damos aos tempos o seu colorido próprio.
Anos depois, corria outra ideia que pode ser mais ou menos assim resumida: Roma, sede do Império Romano, era o centro do mundo, no entanto, como ela estava ameaçada de ser sitiada e invadida por povos bárbaros que a tomariam das autoridades de então, diziam as pessoas: “Se Roma acabar, acabará o mundo”. Outra vez, Santo Agostinho intervém: “Que é Roma? Roma não são as pedras; Roma são os romanos; se os romanos não caírem, Roma não cairá”. E acrescentou: “Quem colocou pedra sobre pedra para construir as muralhas de Roma sabia que as pedras cairiam. Não nos surpreende o fato delas desmoronarem. Mas o essencial de Roma são os seus cidadãos, pois são eles que fazem a grandeza de Roma”.
Eis uma grande verdade: somos maiores e mais importantes do que as pedras de Roma ou do que os males que, hoje, nos ameaçam. E é confiantes nesta segurança que devemos agir. Alicerçados na força renovadora do nosso Batismo e alimentados pela Eucaristia, devemos estar prontos para assumir, neste mundo dilacerado por violências, a nossa missão de ser sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-14).
Em sua época, assim como na nossa, muitos reclamavam: “Os tempos são maus, são ingratos! Como era feliz o passado!” O santo Bispo respondeu: “Os tempos somos nós. Sejamos bons e os tempos serão bons. Quais formos nós, tais serão os tempos”. Ora, esse pensamento do Santo do Norte da África derruba as falas negativistas que tanto ontem quanto hoje circulam por aí, fazendo parecer que devemos capitular ou nos entregar diante do mal que avança. Agostinho nota que nós somos maiores que os tempos, porque nós é que fazemos os tempos ou damos aos tempos o seu colorido próprio.
Anos depois, corria outra ideia que pode ser mais ou menos assim resumida: Roma, sede do Império Romano, era o centro do mundo, no entanto, como ela estava ameaçada de ser sitiada e invadida por povos bárbaros que a tomariam das autoridades de então, diziam as pessoas: “Se Roma acabar, acabará o mundo”. Outra vez, Santo Agostinho intervém: “Que é Roma? Roma não são as pedras; Roma são os romanos; se os romanos não caírem, Roma não cairá”. E acrescentou: “Quem colocou pedra sobre pedra para construir as muralhas de Roma sabia que as pedras cairiam. Não nos surpreende o fato delas desmoronarem. Mas o essencial de Roma são os seus cidadãos, pois são eles que fazem a grandeza de Roma”.
Eis uma grande verdade: somos maiores e mais importantes do que as pedras de Roma ou do que os males que, hoje, nos ameaçam. E é confiantes nesta segurança que devemos agir. Alicerçados na força renovadora do nosso Batismo e alimentados pela Eucaristia, devemos estar prontos para assumir, neste mundo dilacerado por violências, a nossa missão de ser sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-14).
Basta ver a onda alegre que percorre o mundo, chamada “Papa Francisco” acolhido por todas as religiões e lideranças. Em tempos de crises aparecem as oportunidades! O Senhor não desampara o seu povo.
Aqui surge, no entanto, a difícil tarefa de dizer como entendemos, classicamente, violência. Regis Jolivet nos ajuda, dizendo que o termo vem do Latim violentia e se prende à raiz vis = força (Vocabulário de Filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1975). Daí poderíamos ser levados a concluir, de modo precipitado e errôneo, que violento é quem usa uma força qualquer contra os outros.
Esclarece, porém, Dom Estêvão Bettencourt, OSB, que tantos benefícios fez em favor da formação e da defesa da vida em nosso Estado do Rio de Janeiro, ao expor, com precisão, que violência “é o uso injusto da força – física, psíquica ou moral – no intuito de privar alguém de um bem a que tem direito (vida, saúde, liberdade...) ou em vista de impedir-lhe uma opção livre, coagindo-o a fazer até o contrário aos seus interesses”.
“Por conseguinte, não se pode chamar ‘violência’ qualquer uso da força, mas só o injusto, que lese um direito. Assim, um Estado que recorra à força para impor a aplicação de leis justas ou para punir quem as tenha violado com grave prejuízo para o bem comum não comete violência, desde que se mantenha dentro dos limites da justiça” (Pergunte e Responderemos n. 352, setembro de 1991, p. 13). Ultimamente temos discutido muito sobre a questão da força exercida pelo Estado. E olhando o mundo de hoje, quando tudo se relativiza, sem dúvida que é um grave momento de aprofundarmos as ideias e reflexões.
Ora, é distinguindo a violência como mero recurso à força usada de modo injusto, na maioria dos casos, pelas pessoas comuns e a força justa utilizada, especialmente, pelo Estado para manter a reta ordem – embora também essa ação algumas vezes se revista de abusos da parte de autoridades – em nossa sociedade que devemos apoiar tudo o que realmente pode ajudar na manutenção da paz e denunciar, com prudência, mas também com vigor, aquilo que estimula ou promove a violência.
Contudo, as perguntas a serem feitas são as seguintes: que força moral tem para queixar da violência uma sociedade que, caminhando na “cultura da morte” e do “descartável” – para usarmos termos respectivamente tão caros aos Papas João Paulo II e Francisco –, não condena com veemência, mas até estimula, escancaradamente, o homicídio no ventre materno por meio do aborto provocado em suas diversas modalidades?
Como pedir segurança quando se advoga pelo descarte dos que são, arbitrariamente, chamados de inválidos ou improdutivos por serem anciãos, e que, por essa razão, deveriam ficar à margem das coisas abandonados pelos seus, pois parecem pesados a todos? Não é, pois, desse egoísmo que nasce a indefensável promoção da eutanásia?
De que modo queixar da violência infantil ou dos adolescentes se há desvalorização (e até combate) da família monogâmica e estável, célula-mãe da sociedade, deixando as crianças e adolescentes à mercê de um lar desfeito, de uma base familiar mal alicerçada que pode conduzi-las à delinquência cíclica, ao vício das drogas e a tantos outros abusos, tornando-as presas fáceis de interesseiros inescrupulosos de plantão?
Como se assustar ante a violência frente a um ambiente escolar em que, não raro pese – e muito – o esforço dos educadores, se vê a difusão do que se pode chamar de “revolução cultural” a minar as forças dos retos valores e dos bons costumes, levando, assim, a uma permissividade desenfreada na qual a “cultura do relativismo”, tão denunciada pelo Papa Bento XVI, vai se difundindo e quebrando o resto dos valores que ainda se fazem presentes na consciência moral desses educandos?
Essas poucas perguntas, simples, mas provocadoras, não desejam desanimar ninguém na luta incansável pelo bem comum, mas querem, sim, convidar-nos a um seríssimo exame de consciência que nos leve à conversão e à defesa de uma sociedade mais justa, humana e fraterna porque alicerçada não sob areia movediça, mas sob a rocha, que é o próprio Cristo, Nosso Senhor (cf. Mt 7,24-27).
É nesse clima de tantas apreensões, devido à onda de violência desafiadora que nós, os bispos que congregam o Regional Leste 1 da CNBB, erguemos nosso brado nesta Semana Santa, pedindo a todos que nos envolvamos na promoção da paz e da justiça por meio do reconhecimento do que de legítimo é feito pelas forças governamentais para minorar a brutalidade, bem como cobrando mais melhorias a que temos direito.
Todavia, a grande batalha se dá, especialmente, em nível pessoal, pela conversão do nosso coração, por meio da oração, do jejum e da caridade concatenados para um só pedido a Deus e aos homens: queremos a paz!
O tempo pascal nos dá sempre a certeza de que a vida vence a morte e que o Senhor vitorioso com a Ressurreição nos dá a certeza de que a esperança é possível e fundamentada nessa experiência: O Senhor Ressuscitou verdadeiramente, Aleluia!
CNBB, 02-05-2014.
*Dom Orani João Tempesta é cardeal e arcebispo do Rio de Janeiro (RJ).
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