sábado, 21 de junho de 2014

A adolescência midiática

Parece que a irritação infantil tem se alastrado na sociedade e, particularmente, nas mídias sociais.

Gilmar Pereira da Silva, SJ*

Odeia-se a Xuxa. Odeia-se o Pelé. Odeia-se a Dilma. Odeia-se o Galvão, o Chico, o Caetano, a MPB, a Igreja, a Globo, os ateus, o Silvio Santos... Ops! O Silvio não – “ele já está doido”.  Aliás, odiando ou não, nada disso presta. Com perdão aos adolescentes, mas...  Sabe aquele estereótipo de adolescência rebelde, insatisfeita e chata? Pois é. Parece que tal fenômeno tem se alastrado na sociedade e, particularmente, nas mídias sociais.

Para quem tem a parcimônia de usar Twitter e Facebook e de ler comentários em sites de notícias, encontrar discursos de ódio é fácil. Inclusive já cunharam um termo para as pessoas que, geralmente sem muito critério, fazem tais postagens. São os haters (“odiadores”, em tradução livre). E tal “ódio” muito se parece com aquele descrito na psicologia no processo da adolescência, quando a pessoa, na tentativa de afirmar sua individualidade, começa a romper com os enunciados familiares. Há uma necessidade de um parecer contrário justamente para se criar um posicionamento próprio. Se antes o pai era o herói, agora se vê seus limites. Rompe-se a simbiose familiar.

Ao que parece, a plateia ou audiência está nessa adolescência midiática. Quem não se lembra da legião de fãs chamando a Xuxa de rainha ou dizendo que só gostava de ver jogos comentados pelo Galvão? O espectador se diz emancipado e questiona seus antigos ídolos, quer destruir seus totens. Agora ele se posiciona do lado oposto. Mas a referência, ainda que de ódio, continua lá, incólume. E tal polaridade tem sido cansativa. Ou você é PT ou PSDB. Ou melhor, a disjunção é entre “PTralha e Tucanalha”, como se tudo na vida fosse ou oito ou oitenta. Mas a polaridade discursiva não é profunda e, por isso, não reconhece as possíveis contribuições dos múltiplos lados de uma discussão – se esta tem, realmente, lados. A discussão em preto e branco leva a diluição de temas candentes em 50 tons de cinzas. Afinal, para se manter o polar, fecha-se cada opinião ao diálogo. Do ódio e amor extremos, logo vem o discurso de “Não quero discutir. Acho que cada um tem sua verdade e ninguém deve questionar isso”.

A blindagem do ódio visa expulsar qualquer intervenção ou diálogo. Quer-se afirmar a singularidade e, em vez de comunicação, instala-se a proliferação de discursos individuais que devem ser “respeitados” porque “cada um tem sua verdade”, seja lá o que isso significa. A complexidade dá medo e dialogar implica estar sujeito a mutação ou reconhecer que não se é tão exclusivo e original quanto se quer. É doloroso, a quem quer afirmar sua individualidade, reconhecer o fato social, com suas características de coercitividade, exterioridade e generalidade. Por isso, urge não discutir. Antes, grite sua opinião, afirme-se, apoie-se em discursos panfletários da direita e da esquerda. E se não conseguir afirmar-se como indivíduo desse modo, saia do plano ideológico e vá para o estético. Tire uma “self” e poste no Instagram. Uma não, várias. Todas iguais. Afinal, o que conta não é a situação que se registra. A fotografia não conta mais uma história. Celular baixo para foto no espelho do banheiro, mostrando o corpo, e alto para focar o rosto, entortando a boca com estilo.

Talvez Belchior esteja certo ao dizer que “apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Muita da vanguarda atual é tímida e repleta de estrutura retrógrada. É constrangedor se achar à frente do tempo quando se vê a arte de pessoas como Yayoi Kusama, em exposição no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, até o dia 27 de Julho. Kusama é ousada e é tanto mais singular quando mostra a afetação de seu tempo sobre ela. Sua originalidade se expressa também nas suas obsessões. Há repetições constantes em sua obra, como os falos e a famosas bolinhas. Uma obra que expressa de modo direto seus complexos psicológicos. A exposição é uma retrospectiva de seus trabalhos, desde aqueles influenciados pelo estado catastrófico do Japão pós-guerra até suas instalações imersivas que lançam o expectador num universo psíquico repleto do complexo de castração e narcisismo.
Kusama, que hoje vive voluntariamente em uma instituição psiquiátrica, oferece ao visitante da exposição a oportunidade de deitar-se no divã e atentar para as próprias obsessões. Quem não quiser enxergar isso pode mergulhar no fetiche fotográfico e passar de obra em obra deslumbrado. Mas ainda assim, terá que encarar sua compulsão por acumular imagens. A expectativa que se pode criar sobre a obra é de que, como uma espécie de psicanálise artística, ajude o espectador, atravessando a adolescência midiática, a alcançar com saúde a adultez estética, a chegar a uma autentica emancipação como sujeito comunicacional.

*Mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pesquisa em Signo e Significação nas Mídias, Cultura e Ambientes Midiáticos. Graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Possui Graduação em Filosofia (Bacharelado e Licenciatura) pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Experiência na área de Filosofia, com ênfase na filosofia kierkegaardiana. 

Cinema


Teatro

Nenhum comentário:

Postar um comentário