terça-feira, 17 de junho de 2014

A perdida habilidade de falar

A comunicação, hoje, é mais por via digital do que pela vocalização dos pensamentos.

Por Evaldo D´Assumpção*

André Langaney, geneticista do Museu do Homem de Paris nos ensina, em seu livro A mais bela história do homem(Ed.Difel, 2002)que 150.000 anos aC, surgiu o Homo Sapiens, que em determinado momento da história, não era mais do que um grupo de 30 mil espécimes em todo o planeta. Considerando a sua fragilidade física, é de se espantar que tenha sobrevivido e sobrepujado as demais espécies. Mas isso se explica pela capacidade que tiveram de desenvolver a comunicação oral, gramaticalmente estruturada. Com ela conseguiram estabelecer estratégias de defesa junto com seus pares, superando a força bruta dos outros animais. Podemos então afirmar que isso foi alcançado pela nossa capacidade de manifestar coerentemente nossos pensamentos, falando e escutando. E depois, escrevendo.

Diversos estudos sugerem que no início só havia um idioma, enquanto hoje existem mais de 5.000. Teria sido a bíblica torre de Babel uma realidade além das metáforas? Fato é que o surgimento de tantos idiomas nos retirou a coesão fundamental para a sobrevivência humana e a nossa história comprova isto, através das muitas guerras que foram eclodindo, a grande maioria fruto da falta de entendimento entre líderes dos diversos povos. Afinal, quem fala mal, comunica-se pior ainda. E a má comunicação é a fonte inesgotável de confusões e brigas.

O educador canadense Marshall McLuhan, falecido em 1980, previu o surgimento do que ele chamou de Aldeia Global, imaginando o desenvolvimento e a ampliação dos diferentes meios de comunicação. Com eles, acreditava, o mundo se tornaria numa imensa aldeia onde todos se comunicariam. Acertou em parte, errou no todo, pois comunicamos sim, porém pessimamente e a cada dia pioramos mais.

Na primeira década do século XXI surgiram os diferentes sucessores dos telefones, chegando hoje aos cada dia mais sofisticados iPhone, Ipods, Ipads, Tablets, e tantos outros que não se justifica relacioná-los. Com a portabilidade dessas pequeninas engenhocas, pensava-se que as comunicações melhorariam. Ledo engano! Pioraram, e muito. Não me refiro às ligações entre países, ou mesmo espaciais, mas aos diálogos interpessoais, ao vivo e a cores.

Nos dias atuais as pessoas se comunicam mais por via digital do que pela vocalização dos pensamentos. É comum observar-se, em restaurantes, barzinhos e festas, pessoas lado a lado trocando mensagens através de suas parafernálias digitais. Não se olham nos olhos, mas nos teclados. Com isso não percebem as feições do interlocutor e sua mímica facial, que é bem mais expressiva do que os sons vocais. Além disso, tal comportamento é, no mínimo, mal educado, trazendo consequências nem sempre bem avaliadas. Se não, vejamos.

Para se comunicar com agilidade, criou-se um verdadeiro idioma digital, onde as palavras são trocadas por letras (quepor qvocê por vcrisos por rsss, etc.) e sons são representados também por letras, como acontece com a gargalhada, que se torna em kkkk (coisa mais irritante!), sendo a quantidade de ks proporcional à sua intensidade. Não há mais qualquer preocupação com a grafia exata, tampouco com a composição escorreita das frases. Tudo tornou-se permitido. Com tal forma de comunicar, associada à redução cada vez maior das leituras convencionais, especialmente a dos romances clássicos, as pessoas estão perdendo a habilidade de falar. E agora já se pretende produzir “livros clássicos simplificados”, para facilitar a leitura desses textos para o tal de ENEM! Sem trocadilho: nem!...

Os jovens são os mais contaminados por essa epidemia afônica e quase não possuem clareza na expressão de suas ideias. Desconhecem a concordância de gênero e número, engolem sílabas, omitem formas plurais, e cometem muitos outros erros pela falta de agilidade na assimilação dos textos que estão lendo. Chamados a escrever, o fazem de forma incoerente, com grafia errada das palavras, erros de concordância, e outras incontáveis falhas.

Estamos, pois, perdendo a habilidade de falar. E com ela, virá, certamente, a perda de interação, de cooperação, condições que nos permitiram sobreviver entre animais selvagens e dominá-los. Naquele tempo, eram esses animais que não sabiam falar. Hoje, somos nós os selvagens que não sabem falar. Apocalipse a vista!...
*Evaldo D´Assumpção é médico e escritor.

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