No começo do entardecer da vida, a única certeza que tenho é que jamais terei certeza alguma.
Por Ricardo Soares*
Eu poderia ter certeza de onde pôr exatamente meus olhos, meus sonhos, minhas mãos. Eu poderia ter certeza se quero ir por caminhos já abertos ou abrir novas trilhas. Eu poderia ter certeza de que deveria ladrilhar ou asfaltar, rir ou chorar, acenar ou correr atrás, fazendo o carro de bois fazer o retorno. Eu poderia acelerar ou estancar, desenhar ou apenas reproduzir.
Se o dia esfria, eu poderia me agasalhar. Ou deixar estar. Se o dia esquentar eu poderia me desnudar. Ou apenas me preservar. Se eu tiver sede poderei me encharcar ou simplesmente economizar para sobrar mais para os outros. Eu poderia filtrar ou deixar passar batido, ficar por isso mesmo, relativizar, ensaiar movimentos de perdão sem grande confusão.
Diante de tanto trânsito urbano e cósmico, eu poderia simplesmente me deixar congestionar ou deixar a profusão de bólidos passar. Quiçá num ritmo menos acelerado, a astronomia e a física tenham tempo de descobrir novos planetas ou novas saídas para tanto excesso de tráfego. Vai que uma luz salvadora aparece, vai que se descobre o caminho para uma nova dimensão.
Diante de tanta repetição de velhos modelos, eu poderia apenas aderir pra conferir. Ou contestar, pra variar. Poderia tentar oxigenar, fazer o próximo pensar. Ou simplesmente deixar continuar, mesmo quando vejo tantas pessoas a comprarem livros estúpidos de auto -ajuda nas livrarias dos aeroportos. Assim sendo eu poderia apenar deixar aterrissar. Ou voar pra bem longe das metáforas comuns que agora concebo.
Eu poderia ter certeza de qual é o melhor time do mundo, a melhor comida, a melhor bebida, a melhor arte e o maior desastre. Poderia ter certeza de qual é o grande filme, a grande peça que nunca encenei, a palavra que guardei e devia ter dito. Poderia enfim ter, diante de uma encruzilhada, a melhor bússola para melhor me guiar. Mas, como assim, saber por onde continuar? Eu poderia ter tantas certezas mas agora, no começo do entardecer da vida, a única certeza que tenho é que jamais terei certeza alguma.
*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.
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