A Holanda recebe os mortos do avião abatido por um míssil assassino na Ucrânia.
Por Lev Chaim*
Foram quatro dias intensos de um silencioso desfile de carros funerários: 30, 40 ou 50 por dia! Até parecia um filme de guerra em câmera lenta, onde nada mais acontecia, mas só o marchar silencioso dos militares com caixões. Tudo isto acabou por espalhar um sentimento de tristeza, de perda, a todos na Holanda, até mesmo naqueles que não haviam perdido ninguém no vôo da Malásia Airlines.
Eram os restos mortais dos acidentados do avião, atacado no leste da Ucrânia por um míssil perdido, provavelmente detonado pelos separatistas ucranianos, armados pelos russos. Eram os mortos voltando para casa de onde haviam partido. Agora, eles teriam que ser identificados em laboratórios e, depois, entregues às famílias.
Braços, dedos, pernas, corpos, cabeças, documentos ou mesmo roupas. Tudo vale para a identificação dos quase trezentos mortos naquela tragédia, onde mais da metade eram holandeses. Eles vieram da Ucrânia para a Holanda, onde tiveram honras militares à chegada, enquanto eram transportados em caixões nos ombros dos militares, que marchavam em silêncio ao som de uma música que não tocava. Só se ouvia o som de suas botas contra o asfalto da pista do aeroporto, cortando o silêncio absoluto do momento.
Um por um foi carregado até os carros funerários que já os esperavam na pista. No primeiro dia, presente à cerimônia, estavam o rei da Holanda, a rainha, o primeiro-ministro, a ministra da defesa e o ministro das relações exteriores, junto com alguns parentes das vítimas, escolhidos a esmo naquela hora.
No desfilar dos caixões ao som das botas dos militares, todos se lembraram das palavras ditas pelo ministro do exterior da Holanda, Frans Timmermans, na ONU. Elas expressaram o que quase todos os holandeses estavam sentindo: “o que eles teriam feito ou dito nos últimos momentos ali no avião? Teriam se dado as mãos, teriam tido tempo de se abraçar ou de se olhar nos olhos?”
Toda essa cerimonia cadenciosa, dramática pelo volume das perdas que um país pequeno como a Holanda sofreu, ajudou no processo de luto daqueles e de todos que choravam os seus mortos. Tudo ajudava a apaziguar a alma daqueles que, dias antes, haviam visto cenas do desastre, dos corpos espalhados pelos pastos entre os destroços do avião, e sendo tocados aqui e ali por estranhos, que ninguém sabia quem eram.
Foi uma coisa que chocou o país e o mundo. Era uma falta de respeito para com os mortos. O calor intenso ajudava a piorar ainda mais as coisas, pois os corpos começaram a entrar em decomposição e a espalhar um mal cheiro. Isto até que um acordo foi conseguido para o transporte dos restos mortais à Holanda para a identificação final.
Quanto tempo esse processo de identificação irá durar ninguém sabe. Mas uma coisa eu digo. Não quero mais pensar em mortos, nem ver mais desfiles de caixões. Quando acabei de dizer isto, recebi um telefonema anunciando a morte do marido de uma amiga. Será que este catarse de luto iria durar para sempre? – perguntei-me boquiaberto.
Neste último domingo, fomos lanchar com uma amiga numa cidadezinha próxima a Roterdã. Ao entrar em sua casa, notei as fotos de um casal, uma moça e um moço, proeminentemente pregados num painel que fazia as vezes de um porta-retratos. “Sua família Astrid?”, perguntei. Ela virou-se e disse: “Não, são os meus mortos do desastre da Malásia Airlines: minha melhor amiga com seu irmão e os pais que iam de férias”, respondeu ela, com uma entonação bastante triste.
Depois disso, troquei de assunto e não perguntei mais nada. Foi ai que dei por mim. Parecia mesmo que o país inteiro chorava os mortos daquele acidente. Foi ai que me lembrei do livro do autor holandês, Jan Brokken (Almas Bálticas), que estava lendo, quando ele descrevia os transportados dos países bálticos para campos de trabalhos forçados na Sibéria, a mando do ditador soviético Stalin, numa das mais notórias limpezas étnicas daquele país.
Um dos sobreviventes daqueles campos descreveu uma cena: “tudo estava gelado, todos famintos, ninguém tinha fôlego para enterrar os mortos. Deixavam os corpos lá, a céu aberto, e no outro dia eles desapareciam. Haviam sido devorados pelos lobos.” Na primeira vez que li isto, uma arrepio tomou conta do meu corpo, dos pés à cabeça.
Os mortos do acidente aéreo não eram comidos pelos lobos, mas decompostos pelo intenso calor daquele verão, após alguns dias do desastre. E nem eram os lobos que passeavam entre os mortos jogados aqui e ali no pasto, mas humanos que, segundo a minha ideia, procuravam algo de valor daqueles mortos. Que horror e que falta de respeito, pensei comigo mesmo.
Foram quatro dias intensos de um silencioso desfile de carros funerários: 30, 40 ou 50 por dia! Até parecia um filme de guerra em câmera lenta, onde nada mais acontecia, mas só o marchar silencioso dos militares com caixões. Tudo isto acabou por espalhar um sentimento de tristeza, de perda, a todos na Holanda, até mesmo naqueles que não haviam perdido ninguém no vôo da Malásia Airlines.
Eram os restos mortais dos acidentados do avião, atacado no leste da Ucrânia por um míssil perdido, provavelmente detonado pelos separatistas ucranianos, armados pelos russos. Eram os mortos voltando para casa de onde haviam partido. Agora, eles teriam que ser identificados em laboratórios e, depois, entregues às famílias.
Braços, dedos, pernas, corpos, cabeças, documentos ou mesmo roupas. Tudo vale para a identificação dos quase trezentos mortos naquela tragédia, onde mais da metade eram holandeses. Eles vieram da Ucrânia para a Holanda, onde tiveram honras militares à chegada, enquanto eram transportados em caixões nos ombros dos militares, que marchavam em silêncio ao som de uma música que não tocava. Só se ouvia o som de suas botas contra o asfalto da pista do aeroporto, cortando o silêncio absoluto do momento.
Um por um foi carregado até os carros funerários que já os esperavam na pista. No primeiro dia, presente à cerimônia, estavam o rei da Holanda, a rainha, o primeiro-ministro, a ministra da defesa e o ministro das relações exteriores, junto com alguns parentes das vítimas, escolhidos a esmo naquela hora.
No desfilar dos caixões ao som das botas dos militares, todos se lembraram das palavras ditas pelo ministro do exterior da Holanda, Frans Timmermans, na ONU. Elas expressaram o que quase todos os holandeses estavam sentindo: “o que eles teriam feito ou dito nos últimos momentos ali no avião? Teriam se dado as mãos, teriam tido tempo de se abraçar ou de se olhar nos olhos?”
Toda essa cerimonia cadenciosa, dramática pelo volume das perdas que um país pequeno como a Holanda sofreu, ajudou no processo de luto daqueles e de todos que choravam os seus mortos. Tudo ajudava a apaziguar a alma daqueles que, dias antes, haviam visto cenas do desastre, dos corpos espalhados pelos pastos entre os destroços do avião, e sendo tocados aqui e ali por estranhos, que ninguém sabia quem eram.
Foi uma coisa que chocou o país e o mundo. Era uma falta de respeito para com os mortos. O calor intenso ajudava a piorar ainda mais as coisas, pois os corpos começaram a entrar em decomposição e a espalhar um mal cheiro. Isto até que um acordo foi conseguido para o transporte dos restos mortais à Holanda para a identificação final.
Quanto tempo esse processo de identificação irá durar ninguém sabe. Mas uma coisa eu digo. Não quero mais pensar em mortos, nem ver mais desfiles de caixões. Quando acabei de dizer isto, recebi um telefonema anunciando a morte do marido de uma amiga. Será que este catarse de luto iria durar para sempre? – perguntei-me boquiaberto.
Neste último domingo, fomos lanchar com uma amiga numa cidadezinha próxima a Roterdã. Ao entrar em sua casa, notei as fotos de um casal, uma moça e um moço, proeminentemente pregados num painel que fazia as vezes de um porta-retratos. “Sua família Astrid?”, perguntei. Ela virou-se e disse: “Não, são os meus mortos do desastre da Malásia Airlines: minha melhor amiga com seu irmão e os pais que iam de férias”, respondeu ela, com uma entonação bastante triste.
Depois disso, troquei de assunto e não perguntei mais nada. Foi ai que dei por mim. Parecia mesmo que o país inteiro chorava os mortos daquele acidente. Foi ai que me lembrei do livro do autor holandês, Jan Brokken (Almas Bálticas), que estava lendo, quando ele descrevia os transportados dos países bálticos para campos de trabalhos forçados na Sibéria, a mando do ditador soviético Stalin, numa das mais notórias limpezas étnicas daquele país.
Um dos sobreviventes daqueles campos descreveu uma cena: “tudo estava gelado, todos famintos, ninguém tinha fôlego para enterrar os mortos. Deixavam os corpos lá, a céu aberto, e no outro dia eles desapareciam. Haviam sido devorados pelos lobos.” Na primeira vez que li isto, uma arrepio tomou conta do meu corpo, dos pés à cabeça.
Os mortos do acidente aéreo não eram comidos pelos lobos, mas decompostos pelo intenso calor daquele verão, após alguns dias do desastre. E nem eram os lobos que passeavam entre os mortos jogados aqui e ali no pasto, mas humanos que, segundo a minha ideia, procuravam algo de valor daqueles mortos. Que horror e que falta de respeito, pensei comigo mesmo.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Domtotal.
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