quinta-feira, 10 de julho de 2014

Nem todos os unguentos vão aliviar

Só o tempo, muito tempo, poderá fechar esse buraco no peito que cimento nenhum é capaz de tapar.

Por Marco Lacerda*
Shunryo Suzuzi, o mais notável mestre zen do nosso tempo, imigrou para os Estados Unidos depois que o Japão foi arrasado pelos bombardeios americanos no final da II Guerra Mundial. Quando lhe perguntei, anos depois, em San Francisco, o motivo daquela atitude aparentemente bizarra, Suzuki respondeu: “Depois de uma guerra, quem mais precisa de ajuda são os vencedores”.

Lembrei das palavras de Suzuki assim que o massacre alemão se consumou naquela fatídica terça-feira, 8 de julho, que ficará marcada para sempre no meu coração como uma impressão digital. Reconheço, porém, que continua fora do meu alcance a sabedoria de iluminados como Suzuki, sabedoria que tenho buscado pela vida afora com a obstinação de quem corre inutilmente em volta de uma mesa tentando agarrar as próprias costas.

Não é possível sequer entender a humildade e grandeza ética dos vencedores que nos humilharam, nossos algozes, ao reconhecerem, eles próprios, a dimensão da catástrofe e pedirem desculpas aos nossos jogadores e ao povo brasileiro. Nosso futebol foi e ainda é a fonte onde eles bebem desde meninos e, com determinação germânica, aprenderam a jogar bola.

Só o tempo, muito tempo, me fará aceitar o gesto nobre desses alemães. Até porque será difícil apagar da memória os lances que antecederam a grande bancarrota. A galera chegou cedo ao Leblon, bar na avenida dos Bandeirantes onde vi o jogo em BH. Cerveja rolando solta, beijos, abraços e o sonho do hexa cada vez mais perto de se realizar. A multidão que entupia o bar levantou-se para cantar o hino nacional aos berros, com a mão no peito, em uníssono com um Mineirão lotado, exuberante, o fogo da esperança ardendo no coração da massa. Aí veio a humilhante cascata de gols.

O jornalista Veludo Amando de Barros contaria mais tarde que a NET recebeu uma enxurrada de reclamações por volta das 17h30 daquela terça-feira, de assinantes reclamando que a TV só estava repetindo gol da Alemanha. Uma jornalista confessaria nas redes sociais que naquela noite, ao chegar em casa, teve medo de abrir a geladeira e encontrar um gol alemão lá dentro.

A fanfarra que se instalara no Leblon transformou-se num silêncio de cemitério onde podiam-se ouvir os vermes do cadáver putrefato da seleção brasileira transbordarem da televisão e se arrastarem pelo chão sob os nossos pés. Ainda no primeiro tempo (5 a 0) era visível no rosto dos presentes a súplica pelo fim do massacre. Mas ainda havia o segundo tempo mais repudiado da história do futebol. No intervalo, a multidão que lotara o bar debandou em massa, consternada, levando o sonho reduzido a pó e deixando pra trás pratos intocados e copos pela metade.
Que ninguém se atreva a tentar me consolar, dizendo ‘tudo bem, vida que segue’. Segue coisa nenhuma. Tudo parou suspenso no ar, ficou um buraco no peito que cimento nenhum é capaz de fechar. E assim permanecerá até que Deus tenha a compaixão terrena de Shunryo Suzuki e me faça um aceno qualquer, para que a vida enfim retome seu curso normal.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do DomTotal.

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