sexta-feira, 4 de julho de 2014

O grande país da Copa

Será que até a Fifa, dona do Mundial, duvida da brancura desenvolvida do Brasil?

Por David Paiva*

Um dos mais inexpressivos políticos de Minas Gerais, Francelino Pereira fez um dia a pergunta que lhe marcou a vida mas cujo alcance certamente não percebeu. No fundo de alguma angústia, perguntou: "Que país é esse?" O mineiro-piauiense Francelino, então presidente da Arena, partido criado pela ditadura fazer mímica de legalidade, nunca obteve resposta. Na verdade, o imenso país carrega desde então, entalada nos ouvidos, a dúvida de Francelino.

No momento, passamos mais uma vez por grave crise suscitada pela questão. O país que aparece à exaustão na TV, com estridência especial na Globo, é apresentado como a sede da Copa do Mundo. Pensávamos que o país-sede era o Brasil. Mas o tal país da TV é habitado por uma população em que cerca de 38% são louros e os outros se dividem entre os tantos tons de pura raça branca. É a mistura de biótipos europeus com uma gotinha de sangue negro (segundo a fé patrioteira em vigor, mistura linda jamais igualada). Negros e pardos não passam de 1,5% da população do grande país da Copa.

Os estádios são todos impecáveis e novos, mas não poderiam ser diferentes. Para uma população tão bela e rica (só na abastança as pessoas conseguem ser tão belas), não se admitiriam "arenas" mais modestas. Supomos que no entorno das “arenas” existam jardins e parques exuberantes margeados por free-ways e servidos por linhas de subways e monotrilhos silenciosos em que os vagões levitam como trens de sci-fi (mole para o grande país, que possui as maiores reservas mundiais de nióbio, o elemento levitador). Tudo isso a gente deduz da exuberância das imagens da TV e também dos sorrisos e perorações de puro êxtase dos apresentadores. O mais inspirado deles, de tão enfático e fiel ao espirito da nacionalidade,  emite, ininterruptamente, uma espécie de voz de Deus (pena que não seja mais caridoso com os idiomas estrangeiros).

Mas eis que aparecem atrevidamente alguns desmancha-prazeres. Há quem afirme que existem pobres, negros e pardos aos montes nesse país não identificado. Por exemplo, a repórter Eliane Brum (pelo nome, bem poderia estar dentro das “arenas”) relatou no jornal “Folha de S.Paulo” a cena dos pobres aglomerados na porta do estádio, em Fortaleza, apenas para olhar a entrada dos ricos e bonitos. O corredor do Castelão virou o red carpet por onde desfilavam reproduções perfeitas de astros e estrelas, todos de bermuda, short e chinelo, o novo uniforme nacional. À distância, atrás das cercas de proteção, negros, pardos e pobres apreciavam a passagem da classe pagante (o ingresso pode custar muito além de um salário-mínimo). E assim curtiram muito a Copa da Fifa. Sempre atrás da cerca, de onde não manchariam a imagem de harmonia daquela gente que canta na "arena" o hino nacional, o caudal versífero das "margens flácidas”, ridículo como todo hino, porém interminável.

Espantosa também é a discrepância do time em campo. Nesse país, herdeiro direto das belezas da Terra, “a Roma tropical”, segundo seu mais exorbitante antropólogo, justamente nesse país quase todos os artistas da Copa são pardos. Não negros retintos, o que indica miscigenação, acasalamento antigo. Aqueles 1,5% de “morenos” da população parecem estar todos dentro do campo. Mas a própria Fifa se confunde. A entidade exibe um comercial de TV, explícito catálogo de clichês a respeito do país, suas maravilhas e seu povo peladeiro e dançarino – e pardo. Do alto de um morro, um menino-ícone, devidamente pardo e ingênuo, observa embevecido o chão de encantos e o milagre da Copa.

Será que até a dona da Copa duvida da brancura desenvolvida do país? Será que nem a Fifa, tão senhora se si, tão “maior que a ONU”, como diz Havelange, sabe responder à pergunta de Francelino?
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é autor do livro “Memórias dos ‘abitantes’ de Paris".

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