segunda-feira, 7 de julho de 2014

Olhai meus bolsos por favor

Quisera ter os bolsos furados, pois assim eu perderia o pouco que me resta. Ia ter que procurar novas referências.

Por Ricardo Soares*

Olhai meus bolsos. Estão vazios. De carteira, de chaves, de dinheiro, comprovantes bancários, de supermercados ou lava-rápidos. Também estão vazios de bilhetes de metrô ou de loterias, vazios de chicletes e balas, de maços de cigarros ou de pequenos blocos de anotações. Talvez exista em meus bolsos algum documento antigo que revele quem um dia eu fui, com aquela cara comprida e esquisita, cabelo longo desalinhado sobre o rosto em foto tirada justamente no ano em que nasceu a amada.

Olhai meus bolsos. Não existem certidões de nascimento ou pertencimento, nem existem papeizinhos ou pistas que levem aos inúmeros caminhos que trilhei nesses anos todos, para mim insuficientes para aprender a entender sequer bússolas. Não entendo nunca os sinais que me são enviados e nem o norte que devo seguir. E se norte for sul? E se sul for oeste? E se além do oeste há alvoradas no leste?

Olhai meus bolsos. Neles não serão encontrados receitas de pão de queijo nem de torresmos, quiçá de bolo de fubá. Não acharão poemas de Pessoa ou Leminski , de Camões ou Jorge de Lima, sequer um soneto apaixonado de Vinicius de Moraes. Poderão, talvez, achar resquícios de areia da praia do Leme onde imagino Clarice Lispector a andar de mãos dadas com Paulo Mendes Campos naquele amor deles, inviável e louvável. Mas você não sabe quem foi Clarice ou Paulo Mendes, para ti apenas um viaduto na Avenida Cristiano Machado em Belo Horizonte? Tudo bem, eu entendo. A crônica e a poesia são bichos estranhos hoje em dia. Escritores são aqueles que escrevem sobre o “assim, assado”. O momento imediato. A moda do dia. Por isso que digo que não escrevo. Ainda estou digerindo.

Olhai meus bolsos. Quisera tê-los furados, pois assim eu perderia o pouco que me resta. Ia ter que procurar novas referências, novos caminhos, novas identidades nesses tempos de tantas múltiplas fachadas. Mas não. Meus bolsos têm costuras reforçadas e acabam por reter só o que deve ser retido. Com a licença do poeta Aristides Klafke é justamente “ o mistério que tem no coração todo bandido”.
* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário