sexta-feira, 25 de julho de 2014

Pobre velha música...

Talvez seja uma ilusão procurar algum silêncio hoje em dia, nas nossas cidades, para ouvir música em paz.

Por Carlos Ávila*

Ouvir música atualmente – mas ouvir mesmo, com atenção e prazer – está cada vez mais difícil. Coloca-se no aparelho, por exemplo, um CD com o “Concerto para clarinete em lá maior”, de Mozart, e antes mesmo de chegar ao belíssimoAdagio (um dos momentos mais sublimes de toda a história da música, na nossa modesta opinião) uma serra elétrica já está interferindo na audição; melhor seria dizer ferindo nossos ouvidos. Há prédios em construção e reformas por toda parte.

Muda-se então de gênero musical, de algo “suave” para alguma coisa mais ritmada e potente musicalmente: por exemplo, o clássico álbum de jazz “Kind of Blue”, de Miles Davis (com seu famoso sexteto do qual faziam parte John Coltrane e Bill Evans). Mas aí o cachorro do vizinho começa a latir sem parar, talvez não suportando os solos do genial trompetista... Nada contra os cães, pelo contrário (uma das maiores paixões deste cronista foi uma cadela chamada Brigitte, uma lady, branquinha e de belo porte – e que não latia ao ouvir música!). Porém, hoje há cães mal amestrados e ruidosos em excesso.

O jeito mesmo é buscar na discoteca algo bem pesado. Jimi Hendrix e sua guitarra cortante, por exemplo. Lançar mão do rock selvagem de “Electric Ladyland”, o grande disco de Hendrix, com som eletrificado que pode se sobrepor a todos os ruídos circundantes (serras e martelos de obras; motos e buzinas de carros; TVs e rádios ligados no volume máximo; latidos estridentes e gente falando alto ou mesmo gritando). E se o barulho circundante estiver bravo mesmo o melhor é partir para a “guerra” e repetir infinitas vezes, a toda altura, a faixa mais radical do álbum: “And the gods made love” – puro experimentalismo, ruídos que roem tudo ao redor. E estamos conversados.

Realmente está cada dia mais difícil ouvir música, a não ser “música” (atentem para as aspas!) comprovadamente ruim, comercial e banal – tipo breganejo, axé e pagode – que a pouca educação no país (inclusive musical) espalha por todos os lugares.

Talvez seja uma ilusão (ou uma espécie de utopia sem sentido) procurar algum silêncio hoje em dia, nas nossas cidades médias e grandes, para ouvir música em paz. Talvez o silêncio não exista como acreditava o músico John Cage (certa vez ele entrou numa câmara à prova de som e mesmo ali ainda ouviu dois sons: o agudo era o seu sistema nervoso; o grave era o seu sangue em circulação).

Cage utilizou ruídos em suas obras; assim como outros compositores também importantes e fundamentais do século 20 (das máquinas de escrever, tiros de pistola e sirenes de Satie, em “Parade”, aos gritos e sussurros da incrível Cathy Berberian, mixados a sons eletrônicos, por Berio, na sua peça “Visage”). É muito, muito difícil (ou quase impossível) ouvi-los atualmente. Se não conseguimos ouvir nem mesmo Mozart...   
 
*Carlos Ávila é poeta e jornalista. Publicou, entre outros, Bissexto Sentido e Área de Risco (poesia); Poesia Pensada (crítica) e Bri Bri no canto do parque (infantil). Foi, por quatro anos (1995/98), editor do “Suplemento Literário de Minas Gerais”. Trabalhou também na Rede Minas de Televisão e foi editor do caderno de cultura do jornal “Hoje em Dia”. Participou de mais de vinte antologias no país e no exterior.

Nenhum comentário:

Postar um comentário