Um olhar para a obra do grande cineasta italiano, hoje confinado numa cadeira de rodas.
Por Marco Lacerda*
Difícil imaginar que tenha envelhecido este homem de 73 anos chamado Bernardo Bertolucci que há anos se move com a ajuda de uma cadeira de rodas elétrica. Sua imagem sempre foi a de um jovem bonitão e quem se der ao trabalho de revisar sua obra verá que tampouco ela envelheceu e que a Bertolucci jamais poderia ser aplicado o velho rótulo do cineasta que fazia um “cinema que representou o espírito de uma época”.
Imagens peregrinas me vem à memória enquanto vejo seu filme mais recente, ‘Eu e você’, com a mesma curiosidade de sempre naquele magnetismo progressivo que desemboca em momentos de pura emoção. O filme foi realizado nas condições lamentáveis a que sua condição física o condena, mas seu talento permanece intacto, intocado. Mais uma vez ele retorna a personagens que se repetem obsessivamente em sua obra, a câmera movendo-se com a elegância habitual no (quase) único cenário em que a história transcorre, o sótão de uma casa.
‘Eu e você’ foi apresentado no Festival de Cannes de 2012. Não na imponente sessão oficial, mas numa paralela. Ao que parece, o diretor mais poderoso do cinema europeu durante décadas já não tem relevância para competir na primeira fila. E, como era de se esperar, sua nova criação não alcançou as alturas de filmes anteriores. Aliás, faz muito que o cinema não chega mais a esses patamares, a não ser aquele em que o protagonista são os efeitos especiais, planos que não duram mais que cinco segundos e diálogos descerebrados.
Cada vez existem menos distribuidoras e salas dispostas a acolher um cinema que não pode, não sabe e não quer renunciar à autoria. Seu espaço foi ocupado por demências de digestão rápida, por orgias de pipoca e cachorro quente, tudo desenhado para ser esquecido tão logo as luzes do cinema se acendam.
‘Eu e você´ é a adaptação de um romance de Niccoló Ammaniti, que nunca li, mas seu argumento remete a mundo, sentimentos e espaços aos quais Bertolucci já se referiu muitas vezes. Ainda que o tema tratado seja, em alguns momentos, áspero e inquietante, no final saí do cinema com a certeza de que vi um belo filme. Mas jamais vou discutir com nenhum profissional da modernidade, do experimentalismo e da vanguarda o que guarda em sua essência aquilo que um dia foi chamado de um filme bonito.
A elegância inimitável da câmera
Embora tenha começado como ajudante de direção de Pasolini, nada impediu o jovem Bertolucci de ter voz própria desde o princípio. Sua câmera sempre possuiu uma linguagem identificável e poderosa, uma visão das pessoas e das coisas que aspirava à complexidade,a formas inquietantes de contar suas histórias.
Minha lembrança de ‘Antes da revolução’, retrato de um jovem confuso que decide finalmente apostar no caminho fácil até hoje é gratificante. Da mesma forma como a irritação e o tédio que me provocaram o experimental ‘Partner’ e o estilizado e cansativo ‘A estratégia da aranha’, inspirado num conto magistral de Jorge Luis Borges, ‘Tema do traidor e do herói’. Nunca mais as vi nem pretendo.
Meu fascínio imbatível pelo cinema de Bertolucci despontou com ‘O conformista’, a história turva e penetrante de um homem que precisa trair a todos, embrutecer-se, assassinar a mando do fascismo simplesmente para aceitar a si mesmo. O tempo não teve autoridade suficiente para roubar de ‘O conformista’ o mistério, a atmosfera perversa, o erotismo, as imagens e sequências deslumbrantes.
Desnecessário dizer que ‘O conformista’ foi o motivo que levou um hipnotizado Marlon Brando a protagonizar o poético e selvagem exercício de psicanálise de ‘O último tango em Paris’ ao som do saxofone de Gato Barbieri. O filme foi proibido durante anos pela ditadura no Brasil.
Depois desse vulcão interior, Bertolucci tentaria retratar a voz do povo, ao contar a história da Itália desde o apogeu do fascismo até sua derrota, cominando o lirismo com o épico em ‘1900’.
Este grande espetáculo europeu, protagonizado por estrelas emergentes norte-americanas, como Robert De Niro e Donald Sutherland, convenceu Hellywood de que este poeta italiano podia manejar orçamentos de luxo e seguir fazendo seu cinema pessoal. Os nove Oscar conferidos a ‘O último imperador’ confirmaram.
Claro que em meio a tanto esplendor tinha que haver máculas. Prefiro não citá-las para evitar enxaquecas. Fascinou-me, mas ainda duvido que seja um fascínio perdurável, a história daquele garoto heroinômano apaixonado pela mãe em ‘A Lua’. E o clímax da decomposição de um sofisticado casamento ocidental, cercado pelo deserto e a intempérie sentimental na adaptação que Bertolucci fez do romance de Paul Bowles, ‘O céu que nos protege’.
Resgatei o Bertolucci que sempre amei de ‘Os sonhadores’, outra história claustrofóbica de gente muito jovem em maio de 68, em Paris. Algo parecido me tocou diante da emoção na despedida dos irmãos de ‘Eu e você’. Ele pede a ela que deixe as drogas, ela pede a ele que se atreva a viver, a relacionar-se com os outros, à ilusão e ao risco, mesmo que isso implique em quedas vertiginosas. Apesar dos equívocos e dos erros, Bertolucci sempre contou o que precisava contar. Devo incontáveis momentos de emoção genuína a esse artista com o cérebro e a sensibilidade intactos, hoje confinado numa cadeira de rodas.
Imagens peregrinas me vem à memória enquanto vejo seu filme mais recente, ‘Eu e você’, com a mesma curiosidade de sempre naquele magnetismo progressivo que desemboca em momentos de pura emoção. O filme foi realizado nas condições lamentáveis a que sua condição física o condena, mas seu talento permanece intacto, intocado. Mais uma vez ele retorna a personagens que se repetem obsessivamente em sua obra, a câmera movendo-se com a elegância habitual no (quase) único cenário em que a história transcorre, o sótão de uma casa.
‘Eu e você’ foi apresentado no Festival de Cannes de 2012. Não na imponente sessão oficial, mas numa paralela. Ao que parece, o diretor mais poderoso do cinema europeu durante décadas já não tem relevância para competir na primeira fila. E, como era de se esperar, sua nova criação não alcançou as alturas de filmes anteriores. Aliás, faz muito que o cinema não chega mais a esses patamares, a não ser aquele em que o protagonista são os efeitos especiais, planos que não duram mais que cinco segundos e diálogos descerebrados.
Cada vez existem menos distribuidoras e salas dispostas a acolher um cinema que não pode, não sabe e não quer renunciar à autoria. Seu espaço foi ocupado por demências de digestão rápida, por orgias de pipoca e cachorro quente, tudo desenhado para ser esquecido tão logo as luzes do cinema se acendam.
‘Eu e você´ é a adaptação de um romance de Niccoló Ammaniti, que nunca li, mas seu argumento remete a mundo, sentimentos e espaços aos quais Bertolucci já se referiu muitas vezes. Ainda que o tema tratado seja, em alguns momentos, áspero e inquietante, no final saí do cinema com a certeza de que vi um belo filme. Mas jamais vou discutir com nenhum profissional da modernidade, do experimentalismo e da vanguarda o que guarda em sua essência aquilo que um dia foi chamado de um filme bonito.
A elegância inimitável da câmera
Embora tenha começado como ajudante de direção de Pasolini, nada impediu o jovem Bertolucci de ter voz própria desde o princípio. Sua câmera sempre possuiu uma linguagem identificável e poderosa, uma visão das pessoas e das coisas que aspirava à complexidade,a formas inquietantes de contar suas histórias.
Minha lembrança de ‘Antes da revolução’, retrato de um jovem confuso que decide finalmente apostar no caminho fácil até hoje é gratificante. Da mesma forma como a irritação e o tédio que me provocaram o experimental ‘Partner’ e o estilizado e cansativo ‘A estratégia da aranha’, inspirado num conto magistral de Jorge Luis Borges, ‘Tema do traidor e do herói’. Nunca mais as vi nem pretendo.
Meu fascínio imbatível pelo cinema de Bertolucci despontou com ‘O conformista’, a história turva e penetrante de um homem que precisa trair a todos, embrutecer-se, assassinar a mando do fascismo simplesmente para aceitar a si mesmo. O tempo não teve autoridade suficiente para roubar de ‘O conformista’ o mistério, a atmosfera perversa, o erotismo, as imagens e sequências deslumbrantes.
Desnecessário dizer que ‘O conformista’ foi o motivo que levou um hipnotizado Marlon Brando a protagonizar o poético e selvagem exercício de psicanálise de ‘O último tango em Paris’ ao som do saxofone de Gato Barbieri. O filme foi proibido durante anos pela ditadura no Brasil.
Depois desse vulcão interior, Bertolucci tentaria retratar a voz do povo, ao contar a história da Itália desde o apogeu do fascismo até sua derrota, cominando o lirismo com o épico em ‘1900’.
Este grande espetáculo europeu, protagonizado por estrelas emergentes norte-americanas, como Robert De Niro e Donald Sutherland, convenceu Hellywood de que este poeta italiano podia manejar orçamentos de luxo e seguir fazendo seu cinema pessoal. Os nove Oscar conferidos a ‘O último imperador’ confirmaram.
Claro que em meio a tanto esplendor tinha que haver máculas. Prefiro não citá-las para evitar enxaquecas. Fascinou-me, mas ainda duvido que seja um fascínio perdurável, a história daquele garoto heroinômano apaixonado pela mãe em ‘A Lua’. E o clímax da decomposição de um sofisticado casamento ocidental, cercado pelo deserto e a intempérie sentimental na adaptação que Bertolucci fez do romance de Paul Bowles, ‘O céu que nos protege’.
Resgatei o Bertolucci que sempre amei de ‘Os sonhadores’, outra história claustrofóbica de gente muito jovem em maio de 68, em Paris. Algo parecido me tocou diante da emoção na despedida dos irmãos de ‘Eu e você’. Ele pede a ela que deixe as drogas, ela pede a ele que se atreva a viver, a relacionar-se com os outros, à ilusão e ao risco, mesmo que isso implique em quedas vertiginosas. Apesar dos equívocos e dos erros, Bertolucci sempre contou o que precisava contar. Devo incontáveis momentos de emoção genuína a esse artista com o cérebro e a sensibilidade intactos, hoje confinado numa cadeira de rodas.
*Marco Lacerda é jornalista escritor e Editor Especial do DomTotal
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