segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Um político por trás de um avental

Gastón Acurio, o mais influente chef latinomericano, vai se candidatar à presidência do Peru.

Por Julio Villanueva Chang*
Gastón Acurio (Lima, 1967) é um dos chefs mais destacados da América Latina e homem que globalizou a cozinha de seu país, o Peru. Seu pai, o político conservador Gastón Acurio Velarde, quis que seguisse seus passos e quando era jovem o mandou cursar Direito em Madri, mas o rapaz acabou estudando na prestigiada escola de gastronomia Le Cordon Bleu (Paris). Com sua mulher, Astrid Gutsche, que conheceu na Europa, abriu em 1994 Astrid & Gastón, eleito em 2013 o melhor restaurante latino-americano na classificação elaborada anualmente pelo guia San Pellegrino (em 2014, caiu para o terceiro lugar). Grande promotor da cozinha peruana, seu império transcende fronteiras: tem mais de 40 restaurantes em 12 países.

Acurio, hoje, é um político por trás de um avental, uma vestimenta que no Peru desperta o entusiasmo, a confiança e o respeito que a classe política não tem. É um chef e empresário gastronômico que colocou seu país no mapa mundial da gastronomia e que nos últimos meses vem sendo apontado como possível candidato à presidência do Peru, decisão que ele negou uma vez ou outra, mas que não descarta definitivamente. Seu pai, um respeitado ex-ministro e senador de um partido conservador, que se encanta com a ideia de que o filho se torne presidente, o mandou estudar Direito em Madri, mas ele, em segredo, acabou estudando cozinha.

Quando estudante no Le Cordon Bleu de Paris conheceria a alemã Astrid Gutsche, sua mulher, uma cozinheira doce e guerreira, com quem hoje tem duas filhas. Ambos são os fundadores e proprietários de Astrid & Gastón, um dos 50 melhores restaurantes do mundo e o número 1 da América Latina na classificação do guia San Pellegrino. Hoje qualquer declaração pública de Gastón Acurio dá origem a uma discussão entre seu milhão de fãs no Facebook e os 750.000 seguidores no Twitter. Apesar de ter mais de 40 restaurantes distribuídos por 12 países, seu futuro está cada vez mais longe das panelas e mais perto de viagens pelo Peru em busca de novos heróis. O político por trás do avental esclarece o motivo. Tem de honrar uma dívida com o pai.

Ao que parece você é o único cozinheiro do mundo que tem guarda-costas. Por que?

Talvez tenha corrido mais riscos do que deveria. Outro dia, uns bandidos puseram dinamite na janela de um restaurante recém-inaugurado no Peru, vindo da Argentina, com a intenção de extorqui-lo. Supondo que poderiam entrar em um território com lucros promissores no campo da extorsão – semelhante ao da construção, onde muitos sucumbiram ao medo –, começaram a pagar percentuais a bandos que extorquem as pessoas. Nosso setor gastronômico é muito sólido e trabalha muito unido. Sabendo que isso iria ser noticiado, publiquei um anúncio nas minhas contas do Facebook e Twitter: “Metam-se comigo para verem o que vai acontecer com vocês”. Comecei a receber mensagens como “Tenha cuidado”.

Coisas como essa se passaram pelo meu caminho: empresas que se sentiam muito prejudicadas pela nossa defesa da agricultura orgânica, ou quando conseguimos envolver as pessoas para que não comessem camarões na época da proibição de pesca. A polícia me alertou: “Você às vezes se declara com posições muito firmes onde há interesses”. Se você acrescenta o que significa estar na televisão, chega a ter situações semelhantes às de qualquer pessoa pública: um dia, por exemplo, um obcecado apareceu com uma faca porque para ele não deu certo uma receita que eu dei. Há muitas pessoas que dependem do meu trabalho e é melhor tomar algumas precauções. Não é por medo, é por precaução. Se fosse temor, não diria nada e não me meteria em coisas nas quais há perigos, como demonstrei ao longo da minha vida quando acredito em algo que considero ser preciso defender.

O que aprendeu com seus guarda-costas?

Ensinam sobretudo a estar alerta e eu aplico isso no resto da minha vida: estou alerta todo o tempo. Alerta não só para o que sai nas notícias e o que acontece ao meu redor. Alerta para as coisas que você diz. Ser consciente, para o bem e para o mal, da influência que as suas palavras têm. Ser consciente de que o movimento que você faz tem uma consequência. Então, procuro usar esse movimento também de uma forma conciliadora, procuro estender pontes. O que aprendi na estrada; antes era muito mais radical nas minhas posições em relação ao que me incomodava. Em temas como o racismo, eu era irascível, e publicava o que pensava antes de me dar tempo para refletir.

Você cresceu acompanhando seu pai a reuniões onde foi testemunha de como se negociava a política. O que aprendeu sobre ela desde criança?

O que aprendi é o que faço agora: fazer mais política na minha atividade sem entrar no mundo político. Quando quis ser cozinheiro, me olharam como alguém que renunciava a todos os ideais políticos que me haviam inculcado na minha casa. Como cozinheiro demonstrei o contrário: que todos esses ideais podem passar à ação de maneira mais eficaz na trincheira profissional, e que não só você pode fazer coisas, mas também pode ter muito mais poder de convencimento como cozinheiro do que como político.

Você é um cozinheiro que já não cozinha e que se transformou em um ideólogo do assunto. Não existe outro cozinheiro famoso que na sua idade tenha delegado tudo para as mãos de outros chefes de cozinha, absolutamente todos os seus negócios. Seu pai o ensinou a ser um político no sentido essencial e antiquado, ao colocar seus próprios interesses abaixo dos da comunidade. Como entender essa contradição de cozinheiro de trincheira? Você não se incomoda em pensar mais como um homem que está partindo para a guerra do que simplesmente um profissional dos fogões e empresário famoso e milionário? 

Não. São as circunstâncias em que vivo. Na essência, minha vida não mudou nem um pouco desde que eu tinha um só restaurante até hoje. Agora parece que tenho mais dívidas, mais responsabilidades, mais compromissos pessoais. Mas desde o momento em que decido empreender coisas na minha vida, isso vem com um pacote: quando escolho abrir um restaurante no Chile, quero fazer isso bem. Se o negócio corre bem, existe uma possibilidade de aparecerem outras oportunidades em novos países também, e aí vem uma decisão de internacionalizar meu trabalho.

Se opto por entrar na televisão é para fazer o que eu sonhava em fazer com esse meio, Aventura Culinária, onde mostro os restaurantes de outras pessoas. Você se dá conta de que começa a gerar uma comunidade baseada na confiança, no respeito, no agradecimento, e isso vai te levando a perceber que é possível fazer coisas mais importantes que se transformam em comunidades chamadas cozinhas peruanas, onde todos nós trabalhamos em equipe e nos ajudamos mutuamente. Assim decido ir a campo e descubro os produtores, e que isso está ligado com o que meu pai me ensinou desde criança. Afinal, tudo vai crescendo por causa das suas próprias decisões. Elas o distanciam do projeto inicial, do pequeno restaurante com sua esposa, da sua casa à tardinha, de voltar andando para o restaurante à noite e de conhecer seus clientes pelo nome e sobrenome.

Mas também o levam a outras circunstâncias, e eu faria mal se me queixasse de uma posição que me faz lembrar o que me ensinaram desde menino: assumir responsabilidades agradecendo às oportunidades que a vida me deu. Como eu poderia reclamar se ao sair à rua me dão amostras de gratidão, carinho e respeito? São as coisas que eu sentia quando andava com meu pai quando ele era político. A segurança que me dava ver que as pessoas cumprimentavam o meu pai em vez de insultá-lo de alguma maneira está ocorrendo outra vez. Um dia, quem sabe serei como meu pai. O que eu conquistei? Nunca na vida me ocorreria dizer: “Conseguir ter tantos restaurantes”. O mais importante é fazer coisas para criar uma nova ideia sobre a América Latina no mundo, em cidades destacadas, renovar o conceito geral que se tinha sobre a região. A coisa mais importante que conquistei foi conservar o patrimônio do meu nome. Talvez esteja ficando velho: ultimamente falo muito disso, conto histórias do meu pai.

Mas você gosta de brincar com essa ambiguidade. Já negou reiteradamente sua candidatura à presidência, mas...

Sim, mas fiz isso para agitar os políticos. Para dizer a eles, a partir da voz do cidadão: “Olhe, aqui tem uma pessoa que pode chegar a ter esse poder que você pensa que tem para sempre, e não é bem assim. Escute e veja. Tem gente que acredita que um cozinheiro pode ser presidente, e isso devia te dar bastante vergonha. Eu estou fazendo meu trabalho: faça o teu, pare de brigar e comece a trabalhar”. Não é culpa minha se eles ficam nervosos e comecem a fazer declarações e se gere toda uma situação.

Você voltará a dizer que “por enquanto” não está em seus planos e que não pode ver o mundo através de uma bola de cristal?

Claro que sim.

Então não é um “não” definitivo...

A verdade é que eu nunca disse um “não” definitivo para nada.

Voltando a seu pai, você faria isso principalmente por ele?

Pode soar um pouco frívolo, mas na verdade, sim: eu encarno no meu pai o Peru dos meus ideais. Meu pai representa isso, um homem que dedicou sua vida a viver dignamente, com sonhos e utopias que ele defendeu e cujo resultado é ter conquistado respeito até o fim de seus dias, que é a coisa mais bonita que alguém poderia desejar.

Você sempre declarou que seu pai era um homem tolerante, mas que quando decidiu ser cozinheiro, essa postura passou dos limites da compreensão dele.

Com relação à minha escolha, meu pai foi mais ou menos intolerante. Sua intolerância baseava na angústia de não entender o que significava ser cozinheiro. Naquele momento nem eu entendia, e sentia que o havia enganado. Um dia, poucas semanas depois de ter aberto meu primeiro restaurante e meu pai era completamente contra e desconfiava do meu futuro, o porteiro me conta que meu pai passava todas as noites pela porta do restaurante para contar quantos carros estavam parados na frente. Todas as noites. Depois ele me contou a verdade completa: que não só ele passava todas as noites por meu restaurante como também passava pelos outros quatro ou cinco da moda e contava os carros em cada um deles.

Você quase nunca fala de sua mãe. O que ela o ensinou?

Me ensinou a discrição, a serenidade, o equilíbrio. Com o tempo, descobri que ela sofria muito por dentro, mas não era algo que você percebia. Ela é uma personagem admirável, de uma elegância natural.

Depois de ter aberto mais de 40 restaurantes pelo mundo, quem o ajuda a não sorrir tão comodamente aos bajuladores? Quem o ajuda a ser exigente consigo mesmo? 
O medo do fracasso e o medo do ridículo. O temor ao ridículo é mais natural, algo que vem com a gente. Você tem ou não tem. Já o medo ao fracasso me ensinaram em casa. Se eu abro um restaurante e funciona, bem; se não funciona, para mim não é um fracasso: é uma aprendizagem. O medo do fracasso existe para mim no sentido de não enganar. Não enganar as pessoas que confiam em mim. Isso é o que me leva todo o tempo a revisar o que eu estou dizendo e fazendo. A única coisa que me move todos os dias é o medo de enganar alguém.

A gastronomia tem uma cena visível e bastante divulgada, com os chefes e seus pratos. Os agricultores e pescadores, por exemplo, são um mundo invisível que não se pode entender quando se visita um restaurante. O que fazer para ser mais justos com eles?

Primeiro reconhecer uma dívida não só econômica como também histórica e moral. Temos que entender as consequências nefastas dessa atitude das cidades em relação ao campo. Esse olhar arrogante de centros urbanos que historicamente enxergaram os camponeses com desprezo e indiferença. Não eram melhores nem piores, só diferentes, com uma visão de mundo maravilhosa e uma relação com a terra que fazia com que nós da cidade disséssemos: “Não te entendo. Estou oferecendo 10 vezes o valor das suas terras porque quero que aqui passe uma estrada e você não me vende”. Porque a terra não pode ser vendida. A dívida moral não se paga com dinheiro. Se paga com respeito, com reconhecimento, com sinceridade. Havia uma grande desconfiança. Se você chega a uma comunidade, primeiro tem que se apresentar, dizer quem é, a que vem, e depois escutar a comunidade e sua opinião. Assim você aprende uma visão de mundo diferente da sua e vê se há pontos em comum ou não.

Você cria um vínculo estreito baseado na confiança. Recuperada a confiança, tudo é possível. Então, o que temos tentado fazer na cozinha e através dela é falar dessas coisas, mas não abrindo feridas e sim, mais do que tudo, cicatrizando-as. E como cicatrizá-las? Levando respeito e esperança. Convidando, num sábado à noite, uma comunidade das montanhas de Cusco com suas roupas elegantes a se sentar para comer no restaurante e agradecer a eles. Tomando cuidado para que ninguém se atreva a olhá-los com desdém, fazendo-os se sentir em casa, porque são convidados. Você vai estabelecendo, com sinais, ações e gestos honestos, um vínculo de confiança. Por fim, a confiança tem um fundo, que é a aliança do cozinheiro com o camponês.

Milhares de pequenos agricultores que vivem onde ainda ocorrem problemas de violência tratam com uma comunidade de cozinheiros que se tornam um veículo para mostrar seus produtos e também suas histórias de vida. Mas não com um olhar de cima para baixo. Saímos de igual para igual na foto e fazemos um festival de gastronomia, Mistura, para que as pessoas os aplaudam e os reconheçam, para que na cidade se conheça suas vidas e para que eles voltem para suas comunidades para contar o que viveram no festival e que não era o medo que tinham antecipado.

Gastón Acurio e a culinária peruana esquecida. Veja o vídeo:
* Julio Villanueva Chang é correspondente em Lima do El País, onde esta reportagem foi publicada originalmente.

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